O sistema do plea bargain, ou Por uma mudança no sistema processual penal brasileiro

Todo mundo que assiste a filmes americanos a envolver algum tipo de procedimento judicial invariavelmente é apresentado a uma situação na qual acusação e defesa negociam o tamanho da pena a ser imputado ao réu. Coisa estranha, porque, até onde o senso comum enxerga, quem define o tamanho da pena do acusado é o juiz, não as partes. Imaginar advogado de defesa e promotor estipulando anos de cadeia como quem negocia a venda de um carro usado parece ir contra a idéia de justiça. Mas é exatamente assim que acontece. Trata-se do sistema do plea bargain.

Literalmente, plea bargain significaria no vernáculo algo como “pedir uma barganha”. No sentido prático, o termo encerra a possibilidade de acusação e defesa negociarem a condenação de um réu acusado por um crime qualquer. Se quem estudou direito normalmente não entende direito o sistema do plea bargain, que dirá quem nunca estudou letras jurídicas na vida.

Em primeiro lugar, deve-se dizer que o plea bargain dá-se às margens do Poder Judiciário, isto é, o juiz não participa das tratativas de acordo entre as partes. Seu papel será unicamente homologar o acordo. Aliás, é justamente nisso a que se reconduz a “barganha”: evitar o processo judicial e a possível imposição de penas mais gravosas para o réu, caso ele fosse levado a julgamento pelo júri.

Em segundo lugar, mesmo para a fixação do acordo há limites. Por exemplo, todo acordo passa necessariamente pela admissão de culpa do acusado. Ou, de outra forma, não há hipótese de se fazer plea bargain para que o sujeito seja inocentado das acusações. Além disso, para a homologação do acordo, a promotoria deve apresentar as provas que têm contra o réu ao juiz. Isso, claro, para evitar que indevidos assédios acabem fazendo com que sujeitos inocentes aceitem a imposição de culpa por mera perseguição pessoal do promotor.

A maior vantagem do sistema do plea bargain, como qualquer um pode intuir, é a rapidez. Encerra-se o processo antes mesmo de ele começar, garantindo a aplicação da lei penal. Com isso, matam-se dois coelhos com uma só cajadada: sinaliza-se para a população em geral o respeito aos comandos legais e impede-se o assoberbamento das cortes com o julgamento de crimes. Hoje, mais de 90% dos casos criminais são resolvidos através de acordo entre acusação e defesa.

Obviamente, não se trata de um sistema imune a críticas. Não são raros os casos de gente inocente que diz ter sido obrigada a aceitar o acordo oferecido pela promotoria com medo de uma condenação maior em caso de julgamento. Além disso, os réus que se recusam, por qualquer motivo, a aceitar a negociação de tempo na cadeia, em regra são apenados de forma mais rigorosa do que seriam normalmente, tão-só pela “petulância” de terem se recusado a firmar o acordo. No geral, no entanto, o sistema apresenta mais vantagens do que defeitos, e não seria demais afirmar que parte do sucesso do american way of life deve-se a esse modo particular de conduzir o processo criminal.

A esta altura, você deve estar se perguntando: o plea bargain seria uma solução para o Brasil?

Do jeito exato como é aplicado nos Estados Unidos, a resposta é não. São demasiados os riscos que se correria de colocar nas mãos de um único promotor o poder de decidir sobre o tempo que determinado acusado passaria na cadeia. Embora a esmagadora maioria dos promotores do Brasil seja composta por gente íntegra e honesta, não é fantasioso imaginar a hipótese de um promotor ser “convencido” a propor um acordo mais ameno a um réu mais abastado, em troca do recebimento de propina.

Uma alternativa para tornar viável o plea bargain brasileiro seria limitar a competência para propô-lo ao respectivo procurador-geral. Nos casos de competência da Justiça Estadual, o Procurador-geral de Justiça. Nos casos de competência da Justiça Federal, o Procurador-Geral da República.

Além disso, outra hipótese seria conferir aos juízes poderes maiores do que os concedidos aos juízes americanos para o escrutínio das barganhas oferecidas. O juiz poderia, além de recusar o acordo, propor modificações em seus termos, de maneira a que a responsabilidade pela “barganha” não repousasse sobre um único órgão.

Haveria, de forma evidente, limites aos crimes a serem objeto de barganha. Até mesmo por vedações constitucionais, os crimes dolosos contra a vida não poderiam se sujeitar a semelhante sistema. Da mesma forma, alguns crimes com emprego excessivo de violência – como estupro e roubo qualificado – poderiam ficar de fora, pois seria difícil a sociedade aceitar um estuprador passar menos tempo em cana simplesmente porque admitiu a culpa.

Entretanto, para os outros crimes, o plea bargain seria uma saída viável. Casos menores, como os de furto, ou sem emprego de violência, como estelionato ou falsidade ideológica, poderiam ser objeto de transação.

Essa hipótese teria a vantagem de diminuir a quantidade de processos em tramitação e, por conseguinte, deixar aos juízes mais tempo para cuidar dos casos realmente importantes. Com menos processos em tramitação, a velocidade dos julgamentos aumentaria de forma exponencial e o risco de prescrição dos crimes – e as inevitáveis consequências de descrédito na Justiça daí decorrentes – seria reduzido ao mínimo.

Pode ser que o plea bargain seja a solução para a política criminal brasileira. Pode ser que não. A única coisa certa é que, do jeito que está, o sistema processual penal não pode ficar.

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