A corrupção nos carros-pipa, ou O mito dos governos militares

Quem assistiu ao Fantástico neste final de semana, adicionou uma dose cavalar de descrença à sua desesperança com a humanidade.

Não me interessa falar sobre a tragédia da seca. O próprio fato de, em pleno século XXI, boa parte dos brasileiros depender de carros-pipa para ter acesso a água já representa, por si só, a exata dimensão do descaso com a população nordestina. Tampouco me interessa falar sobre a corrupção na contratação de pipeiros. Afinal, esse flagelo desembarcou no Brasil junto com as caravelas de Cabral. Interessa-me, na verdade, analisar a questão sob a ótica subjetiva, isto é, entender o que nos diz a reportagem quando se observa quem praticou a corrupção.

Para quem dormiu mais cedo no domingo, eis o resumo da ópera.

Para prover água às comunidades do Nordeste atingidas pela pior seca dos últimos 50 anos, o Governo Federal contratou milhares de motoristas de carros-pipa. O problema é que um caminhão-pipa é caro. Exige-se um tanque especial, apropriado para receber e armazenar o nosso H2O.

Para driblar esse custo, muitos pipeiros – os motoristas de carros-pipa – compram tanques de combustível usados. Com a ajuda de ferreiros, fazem adaptações visuais para que o tanque ganhe a aparência de um tanque de água. O problema, como explicaram os especialistas, é que a contaminação pelo uso do combustível é permanente. Nem com água benta é possível retirar os resquícios de gasolina, etanol, diesel e querosene que se afixam ao metal do tanque. Por isso mesmo, quem toma dessa água corre riscos que vão desde uma simples diarréia até o câncer.

Noves fora o fato de se colocar toda uma população sob risco de morte, trata-se de mais um caso de corrupção banal no Brasil varonil. Como tantos outros, este não difere em nada no propósito de desviar o dinheiro que, com tanto suor, entregamos ao Governo. Não fosse um fato: a entidade responsável pela fiscalização desses carros-pipa é o Exército brasileiro.

Como se viu durante a reportagem, carros-pipa sem a menor condição de uso obtinham a chancela do Exército. Há casos até de caminhões com placas adulteradas que receberam o selo de “fiscalizado” pelo Exército. Tudo isso com o beneplácito de oficiais.  Alguns até chegaram ao cúmulo de colocar parentes como donos de empresas que prestam serviço de carro-pipa, para poder receber “licitamente” o dinheiro pago pelo Governo.

Durante muitos anos, conservadores tapados e militares “ixpertos” difundiram a idéia de que colocar gorilas no poder era uma boa alternativa ao país. Ora se dizia que era necessário impedir o exercício da presidência por demagogos, ora se dizia que era necessário afastar o Brasil da “ameaça comunista”. Todas as desculpas traziam em comum um argumento tão falso quanto poderoso: os militares seriam mais honestos na execução das funções públicas.

Nada mais absurdo.

Em primeiro lugar, corrupção não escolhe profissão. Se o sujeito tem a natureza corrompida, será corrupto como deputado ou como gari. Independentemente da posição social que ocupar, o cidadão vai descobrir uma forma de enganar o sistema e se locupletar, ainda que mal e porcamente, da coisa pública. Por isso mesmo, a cultura do “jeitinho” encontra-se tão arraigada no imaginário nacional.

Em segundo lugar, são inúmeros os casos de corrupção durante os governos militares, não só no Brasil, mas mundo afora. Não há qualquer evidência científica a demonstrar que um milico no poder praticará menos a corrupção do que um civil. Sendo o militar um ser humano, não razão para acreditar que será diferente de qualquer outro que ocupe o cargo.

Como se isso não bastasse, a corrupção nos governos militares tem todos os defeitos de sua correspondente civil e mais um monte: tortura, cerceamento de liberdades constitucionais, censura, enfim… a lista é grande. Hoje, pelo menos, há liberdade de imprensa para denunciar os desmandos e a tortura deixou de ser prática institucionalizada do Estado. No regime militar, tudo era varrido para debaixo do tapete e quem ousasse propagar denúncias corria o risco de ser suicidado em algum porão do Doi-Codi.

Por isso mesmo, a reportagem do Fantástico veio em tão boa hora. Com tanta gente descrente com a política e a tentação do autoritarismo batendo a porta de algumas manifestações públicas, é sempre bom deixar claro que a alternativa militar é uma carta fora do baralho. Para quem passou por cinco golpes somente no século passado, nunca é demais recordar as agruras de um governo militar.

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2 respostas para A corrupção nos carros-pipa, ou O mito dos governos militares

  1. Mourão disse:

    Nada mais oportuno para desmascarar e desautorizar demagogos investidos de soberanos da honestidade. Por isso e por outra que não caio nessas campanhas sensacionalistas e momentosas contra a corrupção de hoje, levadas a efeito por uma mídia que se beneficiou e se beneficia da corrupção de ontem e de hoje( é só atentar para a sonegação de impostos dos donatários da grande mídia e da vista grossa que fazem da roubalheira de grandes manipuladores e espertalhões vistos como empreendedores,tipo o “grande magnata” Dantas, ou os nobres empresários que corrompem os agentes públicos (somente estes ,que recebem são corruptos. Embora não goste dos termos que você usa ao se referir genericamente aos militares, gosto da maneira idônea como observa os fatos e da franqueza como os expõe. Na verdade, se a imensa maioria dos militares não foi e não é corrupta isso também ocorre com os civis, simplesmente porque em ambos os casos essa maioria não tem sequer a oportunidade de ser corrompida.

    • arthurmaximus disse:

      É isso aí, Comandante. A corrupção atinge o homem como gênero. Por essa razão, não faz sentido acreditar que os militares seriam mais honestos no trato da coisa pública. Aproveito para renovar a ressalva de que o epíteto que o senhor não gosta limita-se aos casos de militares golpistas. Os demais contam com meu mais profundo respeito. Um abraço.

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