Não deu outra. Conforme já foi anunciado neste espaço por diversas vezes (ver aqui, aqui, aqui e aqui), mais hora, menos hora, o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal iria cobrar seu preço. E o preço, claro, seria na forma de uma reação desproporcional do Congresso para fazer valer suas prerrogativas. No final das contas, é a isso que se resume a proposta de emenda à Constituição do Deputado Nazareno Fonteles, do PT do Piauí.
Pra quem está boiando no assunto, ontem a Comissão de Constituição e Justiça aprovou uma PEC segundo a qual, daqui por diante, as decisões do STF que declarem a inconstitucionalidade de leis terão de ser sancionadas por 4/5 dos ministros (hoje se exige apenas maioria absoluta). Pra piorar, a declaração de inconstitucionalidade de PEC’s terá de passar antes pelo crivo – pasmem – do Congresso Nacional. Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal perderá o monopólio da última palavra nessa questão. Este ficará reservado ao mesmo Congresso que aprovou a mudança.
Evidentemente, a aprovação dessa PEC gerou reações nos ministros do Supremo. Enquanto o Procurador-geral da República manifestava sua perplexidade com a medida, Gilmar Mendes lembrava o exemplo da Constituição Polaca, pela qual as decisões do STF ficavam à mercê de Getúlio Vargas, então ditador do país. Balançando a sua toga, Marco Aurélio Mello chiou: “Isso cheira a retaliação”.
Desde a Revolução Francesa, estabeleceu-se que a melhor forma de governo é aquela na qual as funções estatais são repartidas entre três “poderes”: um Legislativo que produz as leis; um Executivo que as executa; e um Judiciário que as aplica. A proposição é simples: com a divisão dos “poderes” estatais, evita-se o aparecimento de um “superpoder” que perigosamente centralize uma ou mais funções e, com isso, desequilibre a frágil balança que equilibra a proeminência política de seus agentes. No entanto, no Brasil, essa doutrina começou a ser esquecida.
Apoiando-se no descrédito crescente do Executivo e, principalmente, do Legislativo, o Supremo enxergou o caminho aberto para assumir o papel de protagonista do Estado brasileiro. Desde mais ou menos a virada do milênio, o STF foi, pouco a pouco, avançando sobre as competências dos demais poderes. Valendo-se da máxima de Rui Barbosa segundo a qual lhe compete “errar por último”, o Supremo acabou atraindo para si uma série de responsabilidades que, pelo texto constitucional, não lhe são afetas. Os exemplos são vários: desde a competência para editar normas gerais por meio do mandado de injunção e das súmulas vinculantes, passando pela criação de nova hipótese de excludente de ilicitude penal (no caso do abortamento de fetos anencefálicos) e até mesmo pela mudança do sentido literal da Constituição (no caso da união homoafetiva), o Supremo foi caminhando cada vez mais rápido em direção à posição de um poder que cria, julga e executa as próprias leis.
Agora, para dar cabo a esse “reordenamento institucional” promovido pelo Supremo, o Congresso resolveu chutar balde. Se a mudança no quórum para as votações em declarações de inconstitucionalidade é algo relativamente fácil de aceitar, transferir ao Congresso a última palavra sobre o julgamento dessas mesmas ações é difícil de digerir.
De fato, o conceito básico da função judicial resulta no poder de dar a última palavra sobre qualquer conflito. Inclusive, e especialmente, aqueles que envolvem a aplicação da própria lei (as declarações de inconstitucionalidade de normas). Quando o Congresso se arroga o poder de substituir-se ao Supremo e passar ele próprio a decidir quando uma decisão judicial vale ou não vale, está-se apenas a estruturar a atual situação ao inverso: ao invés de um Supremo totalizador do poder estatal, teremos um Congresso atuando com o mesmo poder.
Evidentemente, a PEC é totalmente inconstitucional, porque vai de encontro à separação de poderes (art. 60, pár. 4, inc. III, da CF/88). Os congressistas que apoiaram a medida estão carecas de saber disso. Seu intuito provavelmente não é sequer aprovar a medida. É apenas dar um recado para o Supremo: ou vocês moderam, ou a gente vai pro pau.
Marco Aurélio tinha razão. É isso mesmo: retaliação.
Como o Congresso e o Supremo resolverão essa pendenga, são cenas dos próximos capítulos.
Análise bem interessante.
Merci bien, ma cherie. Bissou.
Espero que a intenção do CN tenha sido apenas essa mesmo: mandar um recado para o STF (o que, aliás, estava passando da hora de eles fazerem, com o adendo de que seria muito mais digno que o fizessem legislando sobre os temas em que sua omissão possibilita a movimentação quase normativa do STF). Se essa PEC terminar por ser aprovada, aí veremos o circo pegar fogo no cenário institucional brasileiro…
Pois é, Kellyne, vamos ver no que vai dar isso tudo. Agora, com JB na presidência do STF, fica difícil apostar em alguma solução “diplomática” para o imbróglio. Beijos.