A inconstitucionalidade da PEC dos precatórios

Na área jurídica, todo mundo adora jogar pedras no Supremo. “O Supremo fez isso”, “O Supremo fez aquilo”… E tome pedra em direção àquele prédio que fica defronte ao Planalto. Eu mesmo, de vez em quando, estou com as minhas prontas a jogá-las. Mas, quando o STF dá uma dentro, pouca gente se anima a elogiá-lo. Ontem, no julgamento da Adin sobre a Emenda Constitucional que mudou o regime dos precatórios, é uma ocasião tal.

A maioria das pessoas entende intuitivamente como funciona um processo judicial. Ingressa-se com uma ação, o juiz decide e, caso o réu condenado se recuse a pagar o que deve, o Estado vai lá e toma dele à força. Esse raciocínio é válido para quase todos os casos. Só não vale precisamente para um: quando o Estado está na condição de réu.

Quando qualquer ente da federação – União, Estados, Municípios e Distrito Federal – é demandado judicialmente, o caminho do processo é semelhante ao de um processo comum contra um particular. Ingressa-se com uma ação, o juiz decide e, caso condenado, o Estado tem de pagar ao autor da ação.

O problema começa a aparecer justamente depois dessa fase, isto é, depois de encerrado o processo de conhecimento, sem que caiba mais recurso contra a decisão. Com o chamado trânsito em julgado da decisão, o sujeito tem duas opções: ou paga de forma voluntária o que deve; ou se recusa, e fica sujeito a um processo de execução.

A questão é que, enquanto para os mortais comuns estão sujeitos à expropriação forçada, o Estado não está. As condenações judiciais da Fazenda Pública seguem um rito diferente de execução, o chamado “sistema de precatórios”.

Trocando em miúdos, o sistema de precatórios determina que, uma vez condenado em definitivo, o Estado deve provisionar uma parte de seu orçamento do ano seguinte para pagar ao credor. Para que não haja maracataias, nem gente furando a fila, organiza-se uma ordem cronológica de pagamento. Quem ganhou há mais tempo, recebe primeiro. Quem ganhou depois, recebe mais tarde.

Em tese – eu disse, EM TESE -, a obrigação contida no comando judicial tem de ser cumprida pela Fazenda Pública. Isso porque, como o Judiciário é parte do próprio Estado, se o Executivo se negar a cumprir a decisão ficaríamos na esdrúxula situação de o Estado mandar o próprio Estado pagar e ver-se desobedecido. Por isso mesmo, em caso de descumprimento, ele se sujeita à intervenção federal – no caso dos Estados – ou à intervenção estadual – no caso dos municípios. No papel, tudo muito lindo.

Entretanto, já faz muito tempo, governadores e prefeitos de todo o país metem a cabeça no buraco e fingem que não vêem as condenações judiciais. Desde meados dos anos 80, ganhando força nos anos 90 e 2000, administradores de todas as colorações partidárias passaram a simplesmente ignorar a determinação constitucional de incluir o pagamento dos precatórios no orçamento do ano seguinte. Com isso, os créditos dos pobres coitados que ganharam na justiça foram se acumulando, a ponto de hoje alcançarem a estratosférica quantia de R$ 100 bilhões. (Registre-se, no entanto, que esse problema diz respeito unicamente a estados e municípios; a União sempre pagou religiosamente seus débitos judiciais).

Como se isso não bastasse, os caloteiros articularam a aprovação de uma emenda à Constituição segundo a qual os débitos devidos pela Fazenda Pública seriam parcelados em até 15. Quer dizer: o sujeito passa 20 anos até obter uma decisão judicial favorável que lhe reconhece um direito contra o Estado e, para receber o que lhe é devido, ainda se lhe impõe o pagamento em 15 suaves prestações anuais. Pra piorar, a emenda ainda tungava a correção dos credores, impondo-lhes o índice relativo à caderneta de poupança, bem inferior aos índices de inflação com o acréscimo dos juros legais.

Além dessas duas espertezas, o Supremo também acabou com a extravagante hipótese de “leilão” de precatórios. Segundo a emenda, a Fazenda Pública estava autorizada a fazer leilões entre os credores. Quem oferecesse o maior desconto no valor do crédito, receberia imediatamente, com prioridade. Verdadeira chantagem, porque ou o sujeito aceitava receber bem menos para poder usufruir ainda em vida o crédito que dispunha, ou ficava com o papel na mão e, na melhor das hipóteses, receberia o que lhe era devido em 15 prestações anuais.

Mais do mesmo, essa emenda reflete a cara-de-pau dos políticos do país. Descumprem a lei a ponto de criar com seu descumprimento uma situação de “insustentabilidade”. Depois, criado o impasse, vêm chorar por um arremedo que lhes permita justificar o descumprimento e ainda saírem impunes por ele. Com isso, tentam apagar o passado e posar de “salvadores da Pátria” quando o jeitinho é arrumado.

Felizmente, dessa vez, o Supremo levou o pé à porta. Palmas pra ele.

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