O falso fatalismo cristão

Há uma identificação recorrente de rotular todo cristão – especialmente os católicos – como sujeitos fatalistas. Segundo esse senso comum, o sujeito que acredita em Deus, em Jesus Cristo ou em ambos tende a remeter a causa e a solução de tudo para a Providência Divina. Se acontece alguma coisa ruim, foi “porque Deus quis”. Para melhorar, só “se Deus quiser”.

Muito provavalmente essa relação deu-se em virtude do contexto histórico latino-americano. Como aqui predomina a religião católica, e boa parte do povo é naturalmente fatalista, fica-se com a impressão de que uma coisa está relacionada à outra. Pode até ser que seja mesmo. Mas o fato é que, quem é fatalista, está longe de ser cristão.

Pra começo de conversa, mesmo os agnósticos reconhecem em Jesus Cristo um sujeito crítico. Um “agitador”. Um sujeito que veio para “abalar as estruturas”. Aliás, foi justamente por isso que foi crucificado: subversão. Não à toa, os romanos colocaram ironicamente sobre sua cruz os dizeres Iesus Nazarenus Rex Iodaerum (a famosa sigla INRI); no vernáculo, Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus.

Nos evangelhos escritos por seus seguidores, em nenhum momento sobressai um Cristo fatalista a pregar a conformismo. Muito pelo contrário. Na parábola dos talentos (Mt 25:14-30), por exemplo, Jesus conta a história de um sujeito que deixara “talentos” a três dos seus servos. Ao mais capaz, deu-lhe cinco. A outro, deu dois. Ao menos capaz, deu somente um. Ao retornar, o sujeito constatou que o que recebera cinco havia transformado-os em dez; o que ganhara dois transformara-os em quatro; e o que havia recebido só um o guardara enterrado e devolveu-lhe assim como recebeu. Jesus repreende como severidade o servo preguiçoso. Manda entregar ao servo que tinha dez o único talento do que tinha só um, pois “a todo aquele que tem será dado mais, e terá em abundância. Mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado”. (Jesus referia-se à fé, é claro, embora algumas igrejas “neopentecostais” que pregam a “Teologia da Prosperidade” queiram atribuir valor pecuniário à citação).

Como castigo, Jesus manda lançar nas trevas o servo inútil, onde “haverá choro e ranger de dentes”.

Paulo, o maior responsável pela difusão da religião cristã, vai na mesma linha em uma de suas epístolas. Ele é até mais claro: E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus. (Rm 12:2)

“Ah, mas isso está na Bíblia. A igreja católica prega coisa diferente”.

Pra quem diz isso, sugiro que vá a uma missa e ouça uma das canções cantadas durante a comunhão. Ela começa assim: Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. E ensina em linhas perfeitas o que é o ato de comungar: Comungar é tornar-se um perigo, viemos pra incomodar. Com a fé e a união nossos passos um dia vão chegar“.

E isso não somente com os cristãos católicos. Os verdadeiros protestantes vão na mesma linha. Uma das músicas gospel mais conhecidas agradece o dia feliz (o famoso Oh, happy day, da propaganda da Doriana) e a Cristo por ter lhe ensina a lutar e a rezar (He taught me how to fight, to fight and pray).

Por isso, se você vir alguém por aí exercendo o fatalismo pretensamente sob as bençãos da religião, pode apostar: essa pessoa acredita em tudo, menos em Cristo.

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2 respostas para O falso fatalismo cristão

  1. Kellyne disse:

    Eu acredito que a fé em Deus traz bênçãos em todos os ramos da nossa vida, mas acredito também que Deus, acima de tudo, é justo! Ele abre portas, mas para passar para o lado de lá delas devemos caminhar com nossas próprias pernas… Bjos

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