Como de hábito, toda vez que surge uma decisão judicial controversa, instala-se a balbúrdia no noticiário político. Quando essa decisão na esteira do embate entre o Brasil e os Estados Unidos acerca da clara tentativa de interferência ianque em Terra Brasilis, a confusão atinge as raias do paroxismo. Tal é a conclusão a que se chega a partir da mais recente decisão do ministro Flávio Dino.
Antes de mais nada, convém esclarecer: a decisão de Flávio Dino não diz respeito às sanções impostas por Donald Trump a Alexandre “Xandão” de Moraes. A decisão foi tomada no âmbito da ADPF nº. 1178/DF, que trata da possibilidade teórica de municípios mineiros processarem as empresas responsáveis pela tragédia de Mariana na Inglaterra, onde possuem (também) sede. Dino travou essa via, afirmando – como, aliás, é óbvio – que qualquer decisão tomada por uma corte estrangeira só tem aplicabilidade em território nacional caso seu cumprimento seja aceito pela Justiça brasileira. O procedimento através do qual se autoriza a homologação de uma sentença estrangeira denomina-se exequatur, e sua competência, originalmente atribuída pela Constituição ao Supremo, foi transferida pela Emenda Constitucional nº. 45/2004 ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O problema da decisão de Flávio Dino é que, no afã de “passar um recado” sobre a soberania brasileira a Donald Trump, o ministro meio que extrapolou o objeto da decisão. Tal qual um atacante que busca o contato com o zagueiro para cavar um pênalti, Dino fez constar em sua decisão que “transações, operações, cancelamentos de contrato, bloqueios de ativos, transferências para o exterior (ou oriundas do exterior), por determinação de Estado estrangeiro“, só valem se o próprio STF autorizar. Para bom entendedor, meio despacho basta.
Do ponto de vista estritamente jurídico, a decisão de Dino não é exatamente desarrazoada. Ao contrário. Trata-se de disposição expressa da Lei de Introdução às Normas do Ordenamento Brasileiro (a antiga “Lei de Introdução ao Código Civil”). Em seu artigo 17, está muito claro que “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”. O problema dessa decisão, na verdade, é estratégico e político.
Do ponto de vista político, a decisão é um erro porque ninguém em sã consciência discute que a Lei Magnitsky aplica-se dentro do território nacional, a menos que o Brasil, soberanamente, assim opte por fazê-lo. Na verdade, a aplicação das sanções a Xandão limitam-se ao próprio território norte-americano. A questão é que, como a estrutura do mercado financeiro internacional passa necessariamente pela Roma dos nossos tempos, quase todos os grandes bancos do Brasil operam no mercado estadunidense. Logo, para não serem multados ou impedidos de operar por aquelas bandas, elas necessariamente têm de cumprir a legislação de lá. E, dentre as normas que vigoram na terra do Tio Sam, existe a agora famosa Lei Magnitsky.
Do ponto de vista estratégico, a decisão também é um erro porque, até agora, estávamos mais ou menos numa phony war (guerra de mentira). É verdade que os Estados Unidos e a trupe de antipatriotas bolsonaristas – liderados pelo autoexilado Dudu Bananinha – tinham trombeteado a aplicação da lei a Alexandre de Moraes como se fosse o fim do mundo para o xerife do Supremo. Ocorre, no entanto, que os efeitos práticos da Magnitsky na vida de Xandão tinham sido praticamente nulos. Como o ministro não possui bens no exterior, nada lhe foi confiscado. O máximo de aporrinhamento que lhe havia sido causado havia sido o impedimento de transacionar em dólar. Mas sua conta corrente e todos os seus ativos no Brasil continuavam livres de qualquer impedimento.
Agora, com a decisão de Flávio Dino, isso tende a mudar. Sem pensar nas consequências do que decidiu, Dino meio que “convidou” os americanos a aumentarem o nível das sanções impostas a Moraes. Não será surpresa se, nos próximos dias, houver uma notificação formal ou um anúncio público de que qualquer banco brasileiro que opere nos Estados Unidos seja obrigado a encerrar suas relações comerciais com Xandão. Nesse caso, a banca ficará entre a cruz e a caldeirinha: se seguir a Lei Magnitsky, arrisca-se a tomar multa de Flávio Dino; se seguir a decisão do STF, arrisca-se a ser proibida de operar no mercado norte-americano.
Embora seja doloroso admitir isso, o Brasil e o Supremo ainda não entenderam que esse jogo é jogado na casa do adversário. E, sem alguém que possa exercer o papel de árbitro (que ninguém conte com a Suprema Corte americana pra isso), nós estamos destinados a perder. De acordo com a Global Magnitsky Human Rights Accountability Act (o nome oficial do troço), a decisão de aplicação de suas sanções é estritamente política e fica a cargo do Presidente dos Estados Unidos (Seção 3 da Lei). Questionar essa decisão judicialmente seria um erro estratégico ainda mais grave, porque seria como admitir, implicitamente, que o Brasil e o Supremo estão sujeitos à jurisdição norte-americana.
Se não há saída jurídica, a única alternativa é a via político-diplomática. E, se essa via continuar interditada, só nos resta tentar minimizar os danos práticos aos ministros do Supremo e demais pessoas que vierem a ser sancionadas pelo uso irresponsável e político da Lei Magnitsky. Talvez reservando à Caixa Econômica Federal – que, até onde se sabe, não opera nos EUA – o papel de ser o intermediador bancário dos sancionados. A única coisa que não pode acontecer é o Supremo impor, por coerção, uma crise bancária aos agentes financeiros, obrigando-os a escolherem entre Xandão e seus próprios negócios.
No fim das contas, resta-nos concluir que há um louco na Casa Branca, auxiliado por uma malta de criminosos operando, aqui e lá fora, contra a pátria brasileira. Nesse tipo de cenário, convém estudar a fundo cada passo e agir sempre com a cabeça, nunca com o fígado. É o que se espera que Dino e os demais ministros do Supremo entendam.