Que o bolsonarismo exibe um patriotismo de fancaria, isso toda a gente já sabia. Salvo pelos redutos mais sombrios da Bozolândia, ninguém em sã consciência acreditava quando Jair Bolsonaro bradava “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Se há algo que esta crise de agora nos ensinou é que o verdadeiro lema dos bolsonaristas é “Impunidade acima de tudo, Trump acima de todos”. Seja como for, esse é um bom mote para resgatar um assunto muito pouco estudado no Ocidente, em geral, e no Brasil, em particular: a Guerra Civil Chinesa.
Quem assistiu ao clássico O último imperador, de Berbardo Bertolucci, sabe que a China era um Império mais antigo que Jesus Cristo. Com mais de dois mil anos, o império chinês já apresentava pontos de fissura onde quer que se olhasse. Corrupção, má gestão, derrotas militares em sequência e humilhações impostas por potências estrangeiras – como a Guerra do Ópio, através da qual a China foi obrigada a ceder Hong Kong ao Reino Unido -, fizeram com que o outrora glorioso Império do Meio soçobrasse sobre seus próprios escombros. Pu Yi, o último imperador da dinastia Qing, foi derrubado numa revolução, instaurando-se em seguida uma república.
Como de hábito, após grandes revoluções, emerge grande caos. Longe de trazer estabilidade, o novo regime chinês mergulhou o país numa espécie de anarquia generalizada. Desde sempre um dos maiores países do mundo em extensão territorial, a China meio que foi retalhada entre senhores da guerra regionais, sem que o governo central conseguisse impor sua autoridade à população. Nesse ambiente caótico, surgem duas grandes potências para dar forma e vida ao novo Estado: de um lado, o Partido Nacionalista Chinês, ou Kuomitang; do outro, um partido ainda mais radical, o Partido Comunista Chinês.
No início, ambos os partidos resolveram se organizar para poder colocar alguma ordem naquele pardieiro. Seus dois líderes, Chiag Kai-Shek (Kuomitang) e Mao Zedong (ou Mao Tsé-Tung, como queiram, do PCC) mantinham algum diálogo e conseguiriam manter a unidade territorial do país. A esperança de estabilidade política, contudo, durou pouco.
Em 1927, Chiang Kai-Shek rompe a aliança com os comunistas e começa uma verdadeira guerra de extermínio contra os comunistas. Apoiado pelos Estados Unidos, o líder do Kuomitang caçava os comunistas, organizados em guerrilhas e com parco apoio da recém-surgida União Soviética. A guerra foi marcada por idas e vindas, assim como retiradas estratégicas que ficaram famosas, como a Longa Marcha, em que Mao Zedong liderou 100 mil comunistas numa retirada épica de mais de 10 mil quilômetros. Mais de 90% desse contigente morreria pelo caminho, mas o grupo restante foi capaz de se reagrupar e dar sequência à batalha.
Como desgraça pouca é bobagem, em 1937 – exatos dez anos depois de começada a Guerra Civil – o Japão – a grande potência imperalista do Oriente na época – resolveu invadir o país. Pensando que o estado de beligerância conflagrada entre nacionalistas e comunistas tornaria a tomada da China um verdadeiro passeio no parque, o Japão veio contudo para invadir o continente. Numa só batalha, os japoneses fuzilaram 300 mil chineses, naquele que viria a ser conhecido como o “Massacre de Nanquim”.
Nacionalistas e comunistas foram ao desespero. Não bastassem estarem lutando um contra o outro, ainda havia agora um elemento externo que ameaçava exterminar ambos. Chiang Kai-Shek e Mao Tsé-Tung puseram de lado todo o ódio e ressentimento recíprocos e sentaram à mesa. Engolindo o orgulho, os dois chegaram a uma conclusão similar: precisavam se unir contra o inimigo externo. O lema era: “Salvemos a Nação. Depois, nos matamos todos”.
Assim foi feito. Naquela que talvez foi a aliança mais improvável de todos os tempos, o pessoal do Kuomitang e do Partido Comunista Chinês se uniu na chamada “Frente Unida”. Dois exércitos que literalmente se odiavam resolveram lutar lado a lado contra um inimigo que ameaçava tomar conta sozinho do território pelo qual eles lutavam.
Apesar de tensões internas inequívocas e da desconfiança mútua, o objetivo final foi atingido. De 1937 a 1945, a Guerra Civil chinesa entrou em stand by, até que o Japão fosse derrotado. Com o bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945, o Japão assinaria sua rendição aos norte-americanos. A invasão da China chegava ao fim.
Cumprida a primeira missão de salvar a Nação, os chineses não hesitaram em prosseguir com a segunda: matarem-se todos. Finda a ameaça externa, os nacionalistas e comunistas voltaram à carga com força total. Mais bem organizados e aparelhados, os comunistas terminariam por vencer a Guerra Civil quatro anos depois, em 1949. Batidos, os nacionalistas de Chiang Kai-Shek fugiriam do continente para uma ilha próxima. “Descoberta” pelos portugueses, a ilha tinha o curioso nome de “Formosa”. Dali pra frente, entretanto, ela seria conhecida por outro nome: Taiwan.
Desde então, a “República da China”, ou “China Nacionalista”, ou simplesmente Taiwan, vive em estado de guerra não declarada com a “República Popular da China”, ou “China Continental”, ou simplesmente China. Mesmo assim, o que nacionalistas e comunistas ensinaram é que, em nome da pátria, vale tudo, até mesmo juntar-se ao seu pior inimigo para salvá-la.
Aqui, ao contrário, a liberdade de um só homem é colocada acima dos interesses e da estabilidade de toda uma Nação. Ao invés de unir forças contra o ataque externo – representado, neste caso, pelas sanções econômicas do Laranjão – os bolsonaristas pretendem dividir o país para salvar o seu “mito”. E eles ainda têm a cara-de-pau de se dizerem “patriotas”.
Durma-se com um barulho desses…