País à deriva, ou Parlamentarismo bastardo – Parte II

Não foi por falta de aviso.

Sem base sólida, presidindo um governo francamente minoritário e sem a menor paciência para o rame-rame diário da política ordinária (nos sentidos denotativo e conotativo da palavra), Lula viu ontem mais uma vez seu governo ser atocaiado pelo Congresso. Descumprindo um acordo firmado com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o presidente da Câmara, Hugo Motta, convocou uma sessão da Câmara para derrubar o decreto governamental que aumentar as alíquotas de IOF. Numa tabelinha com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, Motta mostrou o tamanho da desconexão entre o Executivo e o Legislativo, ao amealhar quase 400 votos pela derrubada do decreto. No Senado, a votação foi simbólica.

E agora?

Do ponto de vista jurídico, a decisão não se sustenta. De acordo com o art. 49, inc. V, da Constituição Federal de 1988, cabe ao Congresso Nacional “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”. No caso do IOF, a própria Constituição prevê que o Executivo possa, por meio de decreto, alterar as suas alíquotas (art. 153, §1º, CF/88). A menos que o decreto tratasse de outra coisa que não alteração de alíquota, não há o menor cabimento em ver o Congresso anular uma decisão soberana do Presidente da República.

Dado o contexto político atual, é difícil imaginar que o Governo venha a judicializar a questão. Não só porque a relação com o Congresso já está demasiadamente esgarçada – uma ida ao STF seria vista como drible ao Congresso -, mas também porque o Supremo, às voltas com o julgamento da cúpula do golpe , não se encontra com capital político sobrando para gastar numa contenda que não é propriamente sua.

Fazer o quê, então?

Rebobinar a fita não vai adiantar muito a essa altura do campeonato. Lula poderia ter deixado outra pessoa que não Gleisi Hoffmann para lidar com os abutres do Congresso. Poderia, também, ter deixado Geraldo Alckmin como responsável pela gerência da quitanda enquanto flana pelos fóruns mundiais. Poderia, pelo menos, ter se certificado da mínima fidelidade dos partidos do Centrão antes de sair por aí distribuindo ministérios, cargos e prebendas para eles.

Resta, agora, partir para o embate. Lula não tem outra alternativa. Seu governo falhou miseravelmente em construir um sucessor natural para o babalorixá petista. Provavelmente por ego, certamente por hesitação, Lula praticamente empalhou em seu ministério alguns dos nomes mais óbvios que poderiam estar na prateleira para servir de opção em 2026. Tebet desapareceu. Alckmin idem. Marina só aparece quando atacada pelo “ogronegócio” numa sessão do Senado. Camilo Santana ainda não mostrou a que veio no MEC. Enquanto isso, a grande estrela da companhia, Fernando Haddad, parece ter carimbado na testa para sempre o apelido de “Taxad”.

O que sobrou pra Lula agora é fazer a tão famosa “luta política”. O primeiro passo pra isso é dar nome aos bois. Se o Congresso quer impedir o aumento do IOF em nome da “pauta fiscal”, muito bem. Para ser coerente com essa “agenda”, Lula deve vetar o aumento indecoroso do número de deputados para 531, numa pauta tão corporativista quanto cínica, patrocinada pela cúpula congressual.

Para além disso, deve ir pro pau na questão das emendas. Bloqueá-las tão-somente não vai resolver a questão. São mais de R$ 50 bilhões, boa parte escorrendo pelos desvãos da corrupção e da malandragem. Lula tem que ir à TV e à redes sociais denunciar que o mesmo Congresso que fala em “cortar custos” defende como um time retranqueiro suas verbas paroquiais. Ao mesmo tempo, seria bom também o Supremo jogar luz sobre os inquéritos já abertos para apurar os malfeitos nessa seara. Uma coisa é a população imaginar que a roubalheira nesse quesito é grande. Outra, bem diferente, é identificar nominalmente quem e quanto foi roubado.

Agora, se Lula quiser continuar passeando pelo mundo com a primeira-dama, sem gastar saliva nem pestana com a desgraceira que corre aqui dentro, bem… aí, paciência. Quando um Bolsonaro ou outro proxy qualquer ganhar a eleição do ano que vem, não vai adiantar chorar. Ao olhar ao redor em busca de um responsável pela derrota, alguém deverá lhe fazer o favor de mostrar um espelho. É no seu reflexo que ele encontrará o culpado.

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