Os juízes e suas convicções

Julgar é uma arte. Pouco compreendida pela população, é verdade, mas ainda assim uma arte. São poucos os que entendem os desafios por trás do sentimento de decidir sobre a vida de um semelhante. Não por acaso, alguns dos mais brilhantes advogados jamais se aventuraram a vestir a toga e passar para o outro lado. O que pesa na definição de um bom julgador não é (somente) o conhecimento. É sobretudo a coragem para resolver questões difíceis com um olho na lei e outro no coração.

José Ricardo não tinha entendido muito bem esse dilema. Se lhe sobravam dedicação e estudo, faltavam-lhe convicção e coragem. Numa roda de amigos, Zé Ricardo conseguia a proeza de dizer uma coisa e seu contrário, concordando com alguém na roda para renegar a própria posição cinco minutos depois, ao ouvir outro amigo contra-argumentando. Sim, Zé Ricardo era a dúvida ambulante.

Desde o primeiro semestre da faculdade, ele resolvera que iria estudar para ser juiz. E não “qualquer” juiz, mas juiz federal, pois a vida de interior não combinava com seus mui bem cultivados hábitos urbanos. Naquela época, ainda não tivera lugar a interiorização da Justiça Federal. Então, mesmo como substituto, o cidadão sabia que iria morar em alguma capital.

Na capital para a qual Zé Ricardo foi designado, porém, reinava soberanamente como diretor do foro Jorge Luiz. Com alguns anos a mais de ofício nas costas, Jorge Luiz fazia o gênero do juiz carrasco. Exibia a todo tempo uma coragem que chegava no limite da irresponsabilidade. Era o tipo de juiz do qual até os servidores têm medo de entrar na sala para perguntar alguma coisa. Os advogados, então, evitavam ir despachar pessoalmente com ele. Preferiam peticionar no processo a ter de encarar a fera de frente.

Logo depois de Zé Ricardo assumir, caiu-lhe sobre a mesa um processo sensível. A matéria em questão era de natureza ambiental e, apesar de a situação de fundo ser muito clara, havia muitos intere$$e$ envolvidos. Uma grande empresa local estava por trás do problema. E, como toda grande empresa local, seus advogados eram os melhores e mais renomados do Estado.

Zé Ricardo, contudo, parecia disposto a usar a caneta. Ao receber a petição do Ministério Público Federal, concedeu a liminar para interromper a atividade ambientalmente danosa da empresa até segunda ordem. A convicção era tanta que ele deferiu a medida inaudita altera parte, isto é, sem sequer ouvir a parte contrária. “Cumpra-se”, determinou o novo magistrado.

A liminar caiu como uma bomba na empresa. Imediatamente, o setor operacional acionou o jurídico para que resolvesse a questão. Uma tropa formada por três dos advogados mais conhecidos da cidade se abalou direto para o fórum da Justiça Federal. Fizeram o que todo bom advogado faz de melhor: chorar.

“Doutor, olha só: se as atividades da empresa forem paralisadas, quase mil empregos vão estar em risco. A própria sobrevivência da empresa estará em perigo. Olha a quantidade de impostos que o município e o Estado vão perder com isso”, alegaram os nobres causídicos, entre outras tecnicalidades.

Sensibilizado pela ladainha dos advogados, Zé Ricardo voltou atrás. Revogou a liminar concedida e determinou a intimação do MPF sobre a nova decisão. Seria apenas a primeira reviravolta daquele dia.

Ao receber a intimação, os procuradores da República ficaram sem entender nada. Como assim, o juiz volta atrás e dá o dito pelo não dito? Como a indignação é prima do ódio, os membros do MPF saíram da sala bufando, pegaram o carro oficial e foram novamente ter com o magistrado.

“Excelência, não é possível. Olha só o tamanho do dano que essa empresa está causando. Se a liminar não for concedida agora, não vai adiantar nada julgar depois. O estrago já estará tão grande que não haverá mais o que salvar no local afetado”, reclamaram os procuradores.

Zé Ricardo voltou atrás. De novo. Desfez o desdito e voltou a ordenar a interrupção das atividades da empresa. Ainda não era o final dessa história.

Ao saber da nova liminar, novamente os advogados da firma foram conversar com o juiz. Mais uma vez sensível aos argumentos dos patronos da empresa, Zé Ricardo voltou atrás novamente e denegou a liminar.

Imaginando que algo semelhante pudesse ocorrer, os procuradores da República nem haviam saído do fórum. Ao saberem da segunda revogação, foram lá novamente pressionar o juiz a conceder a liminar. Ao conseguirem – pela terceira vez – que o juiz determinasse a mesma coisa que dera inicialmente, o pessoal do MPF resolveu montar guarda no gabinete de Zé Ricardo. A idéia era barrar – fisicamente, se necessário – a entrada dos advogados da empresa para evitar que o juiz voltasse atrás novamente.

Ao ver tanto entra e sai no fórum, Jorge Luiz foi perguntar ao seu Diretor de Secretaria o que estava se passando. Como a rádio-corredor é o melhor serviço de inteligência de qualquer repartição pública, o diretor de Jorge Luiz já estava sabendo da história toda. Sem acreditar no relato, Jorge Luiz saiu furioso em direção ao gabinete de Zé Ricardo. Depois de passar pela barreira dos procuradores da República, Jorge Luiz mandou na lata para o colega mais novo:

“Isso tudo é um absurdo, Zé Ricardo! Você é um juiz ou um cossaco?!?”

E foi assim que Zé Ricardo descobriu que, para ser juiz, não basta apenas ter conhecimento jurídico; é necessário também ter cojones

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