Anamnese do amor

Médica gastrologista, 35 anos nas costas, Clara tinha uma teoria: encontrar um homem decente após os 30 era como tentar diagnosticar uma doença rara sem fazer exames complementares. Possível? Sim. Mas muito, muito improvável. Fernanda, sua colega de turma, pediatra, fazia pouco caso do pessimismo da amiga. Insistente, conseguiu arranjar um date entre ela e um outro médico que trabalhava no mesmo hospital que ela. Marcos, cirurgião vascular, era – nos dizeres de Fernanda – “um amor de pessoa”. Fazer o papel de cupido nesse caso seria quase como fazer uma boa ação dupla. Reticente por temperamento, cautelosa por opção, Clara deixou de lado seus instintos naturais e topou o encontro. Afinal, quão ruim poderia ser o encontro?

O encontro foi comme il faut. Requintado, Marcos reservou uma mesa em um dos melhores restaurantes franceses da cidade. Tudo bem que a escolha tinha sido feita através da quantidade de estrelas que o estabelecimento tinha no Google. Mas, nos tempos de hoje, quem haveria de recriminá-lo? Marcos chegou um pouco atrasado, encontrando a mesa já ocupada por uma impaciente Clara.

“Desculpa, é porque apareceu uma emergência de última hora e eu ainda tive de passar em casa pra me arrumar”, explicou Marcos.

Ressabiada, Clara deu-lhe o benefício da dúvida. Pra galera do “30+”, a paciência costuma ser uma virtude meio impositiva (o desespero aumenta à medida que os anos passam). Além disso, apesar de não ser a última Coca-Cola do deserto, o sujeito era bem apessoado e aparentava saber usar os talheres à mesa.

Como ambos eram médicos, encontrar um assunto em comum não foi lá muito difícil. Entre causos de pacientes estranhos e críticas escancaradas ao SUS, Marcos e Clara riam e trocavam sorrisos. Melhor. Cumprindo o protocolo, Marcos elogiara o vestido de Clara e não mencionara sequer uma das suas namoradas anteriores. O beijo para selar o sucesso do encontro parecia apenas uma questão de tempo.

Parecia.

Com cada um deles já tendo sorvido duas taças de vinho, Marcos decidiu que era hora de partir para o ataque. Aproveitou o copo vazio de Clara e prontificou-se a enchê-lo novamente. Quando Clara aproximou a taça na mesa, Marcos – com a mão esquerda segurando a garrafa de vinho – deixou pousar a mão esquerda por sobre a mão com a qual Clara segurava a taça. Os dois se entreolharam. Tímida, Clara baixou os olhos e sorriu discretamente. Foi quando Marcos resolveu falar:

“Acho que nunca mais vou soltar essa mão”, disse ele com um olhar que pretendia ser charmoso, mas que na verdade parecia meloso demais.

O gelo correu pela espinha de Clara. Não pela declaração em si, mas pelo timing da declaração. Como assim o sujeito se agarra dessa forma a uma mulher que acabara de conhecer? Já ferida de outros carnavais, Clara sabia que declarações prematuras eram como apendicite: se não tratadas rapidamente, terminavam mal. Para contrabalançar um Marcos “emocionado”, Clara pensou numa tirada rápida para quebrar a tensão.

“Vamos então marcar uma terapia”, disse ela sorrindo.

Pra quê?

Foi como despertar um vulcão em erupção. Os olhos de Marcos, até então brilhantes pelas lágrimas ainda não vertidas, tomaram subitamente a aparência de um inferno em chamas, vermelhos de tanto sangue. O ódio que eles transmitiam era tão concreto que seria possível cortá-lo com uma faca.

“Brincadeira de mau gosto”, respondeu rispidamente Marcos, enquanto cerrava a língua entre os dentes.

O que parecia ser um encontro promissor terminou com um “a gente vai se falando” tão seco que o garçom pensou até em oferecer água por conta da casa.

No dia seguinte, enquanto Clara tentava esquecer o episódio, seu WhatsApp vibrou. Era Marcos. Não era um “bom dia”. Não era um emoji de coração partido, Não era sequer uma figurinha daquelas pra favoritar. Era um textão. Mas um textão mesmo, daqueles que remoem as tristezas da vida e as injustiças do Universo. Sem conter o riso, Clara parou de ler quando chegou numa citação dela. Sim, dela mesma: Clarice Lispector. O que era pra ser um date casual se transformara em novelão do SBT. Clara limitou-se a responder:

“Obrigado pelo retorno. Vou repassar à minha terapeuta.” Depois, bloqueou o sujeito.

E foi assim que Clara descobriu que, na sua busca por um grande amor, duas qualidades essenciais eram indispensáveis: senso de humor e um terapeuta melhor que o dela…

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