Morte ousada

Cursou Direito, mas sua paixão sempre foram as línguas. Fabrício amava todas elas. Depois de aprender na escola inglês, francês e alemão, tornara-se autodidata em grego. Nem as mortas escapavam da sua paixão. Como as letras jurídicas lhe impusessem algum tipo de conhecimento sobre a língua de Cícero, Fabrício resolveu estudar latim.

Estudar, aliás, não define muito bem sua relação com a língua oficial do Vaticano. Fabrício não sabia fazer as coisas pela metade. Dedicou-se tão a fundo no aprendizado da língua que, ainda na Faculdade, tornou-se monitor. Não de Penal ou de Processo Civil, mas da cadeira de Latim. E não no curso de Direito, mas em Letras. Sim, Fabrício não era qualquer um.

Não sendo qualquer um, tampouco seu casamento poderia ser qualquer casamento. Tendo se enamorado de uma de suas colegas monitoras na Faculdade de Letras, Fabrício propôs-lhe o velho rito matrimonial do século XIX, com direito a festa de noivado, cinco semanas de cerimônia com a família, para só depois haver a celebração do matrimônio.

Mas não era qualquer cerimônia matrimonial. Absolutamente. Como bons latinistas, ambos faziam questão da missa celebrada de acordo com o rito tridentino, isto é, rezada em latim, inclusive com a troca do famoso “sim” pelo medieval “volo”. O problema? Desde o Concílio Vaticano II, todas os rituais católicos – incluindo o casamento – devem ser celebrados em vernáculo. Para que uma missa seja celebrada em latim, deve haver, antes, um requerimento específico, aprovado pelo bispo responsável pela diocese.

Pedido feito, pedido aprovado. Uma vez que a maior parte dos padres – justamente por conta do Vaticano II – estuda Latim apenas por obrigação, sem se tornar necessariamente versado na língua, faltava encontrar um padre que estivesse em condições de celebrar o matrimônio de acordo com o rito tridentino. Conhecedores de toda a comunidade latinista daquela capital, tal tarefa acabou não se revelando grande empecilho.

No dia da celebração, além da família e dos amigos de sempre, Fabrício convidou Raul. Colega de estágio de Fabrício, Raul também sempre demonstrara paixões por línguas, embora com muito menos talento e afinco do que o amigo. A admiração era mútua e, com ele na festa, seria possível ter alguém para conversar coisas de Direito, caso fosse necessário fugir um pouco do latim.

Chegando à igreja, Raul viu logo na entrada Fabrício e o padre conversando. Como não conhecia quase ninguém na festa além do próprio noivo, Raul achou por bem ficar ali mesmo, fazendo o small talk com ambos. Ao contrário do imaginado, a conversa não girou em torno dos assuntos jurídicos ou mesmo latinescos, mas, sim, de coisas triviais, como a vida, a morte, etc.

Fabrício discorria sobre a tese epicurista, de fazer como se gozasse da vida a cada momento, o máximo que fosse possível. Raul, ao revés, defendia uma linha mais estoicista, um negócio mais sereno, ponderado, sossegado e sem grandes exageros. Entre os dois, o padre tentava ficar ali no caminho do meio, sem se comprometer com qualquer dos lados.

Naquela semana, contudo, morria, após um longo período de internação, Antônio Carlos Magalhães, o todo-poderoso senhor da Bahia por quase quatro décadas. Era a notícia da semana do país. Apesar de discordarem em relação à forma com a qual se deveria enxergar a vida, Fabrício e Raul concordavam em um ponto: o melhor a fazer era aproveitá-la, porque ninguém sabe o que vem depois dela. Foi quando Raul acrescentou:

“Vejam vocês: até o Antônio Carlos Magalhães, que parecia imortal, morreu. Imagina quando chegar a nossa vez”.

Ao que o padre simplesmente respondeu:

“Pois é. A morte teve essa ousadia: levou o Antônio Carlos Magalhães”.

Fabrício e Raul se entreolharam por dois segundos. Depois, todos caíram na risada.

E foi assim que Raul descobriu que mesmo padres ordenados são capazes de tirar onda com trivialidades mundanas…

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