Dona Anabel sempre prezou pela própria independência. Nascida numa geração em que não se aceitava ajuda sequer para escapar da lei da gravidade, aos 89 anos ela ainda dirigia, cuidava da casa e, aos fins de semana, nadava em mar aberto. Sim, a vitalidade daquela quase nonagenária fazia inveja a muita garota de vinte anos que andava por aí.
Essa vitalidade, contudo, não a tornava imune às adversidades da vida. Certa feita, tendo chamado a filha para assistir a um filme no cinema, negou-se a pegar o elevador para sair da entrada até a sala onde a película seria projetada. “Elevador é coisa para velhos! Eu vou de escada, mesmo!”
A soberba literalmente precedeu a queda. Em um momento de tontura, Anabel desequilibrou-se e rolou escada abaixo. O corpo firme e rígido, moldado pela musculação e pelo pilates duas vezes por semana, absorveu bem a queda. A cabeça, entretanto, não é dotada de músculos para amortecer pancadas. Resultado: nenhum osso do corpo quebrado, mas um traumatismo craniano bem grave obrigou-a a ser conduzida de ambulância ao hospital.
Por conta da idade e do local atingido, os médicos não tiveram dúvidas: da ambulância Anabel foi deslocada imediatamente para a UTI. Dois dias depois ela já estava acordada, recebendo visitas. Não se recordava de nada (como é comum nesses casos), mas, dado o quadro geral da paciente, os médicos transferiram-na da unidade de tratamento intensivo para o quarto.
Numa situação dessas, os médicos costumam pecar pelo excesso. Ninguém quer ser acusado de liberar uma paciente antes da hora, com risco de agravamento e posterior regresso à internação. Por isso mesmo, passada uma semana do acidente, Anabel continuava – para seu desgosto e contrariedade – confinada ao quarto do hospital.
Depois de dez dias da queda, como ninguém mais compreendesse a insistência com a internação daquela velhinha, os médicos responsáveis pelo caso resolveram dar um jeito de “resolver sem resolver” a alta da paciente. Tirando o corpo fora, os neurologistas chamaram a família para dizer que estavam passando a batata quente adiante: “Olha, vamos pedir aqui uma ressonância magnética do cérebro dela. Se estiver tudo ok, a gente dá alta e ela vai pra casa”.
Tudo muito bom, tudo muito bem. O problema: laudos desse tipo demoram pelo menos uma semana para sair. Sendo a neurologia um dos ramos mais desafiadores da medicina, os profissionais aptos a laudar esse tipo de exame não abundam no mercado. O neto de Anabel, Raul, não se deu por vencido:
“Não se preocupem. Eu vou lá com ela na ambulância para fazer o exame. Eu converso com o médico que estiver lá e peço para ele laudar na hora. Aí a vovó já sai amanhã daqui”.
A namorada de Raul, desconfiada, fez pouco caso da resolutividade dele:
“E tu acha que só pedindo tu vai conseguir um negócio desses? Tu tem idéia de quantos laudos um médico desses tem pra fazer por dia? Não tem nem perigo de tu sair de lá com o laudo na mão”.
Raul não se deu por achado. Pegou os enfermeiros e seguiu com a avó dentro da ambulância até a clínica onde a ressonância seria realizada. Ao chegar lá, Raul descobriu que não era um médico que faria o exame. Era uma médica. Seguindo o roteiro planejado, o neto de Anabel pediu para falar com com ela. Explicou pormenorizadamente todo o imbróglio da queda e da internação e suplicou para que a médica tivesse compaixão para dar o laudo na hora.
“Claro. Sem problema. Você pode até entrar aqui na sala ver o cérebro da sua avó enquanto eu faço o exame”, respondeu a médica, de forma muito solícita. “Olha, cê tá vendo isso aqui?”, disse a médica a Raul, enquanto apontava o dedo para a tela na qual se projetavam as imagens da ressonância. “São sulcos naturais da idade avançada. Aparentemente não ficou nenhuma sequela da queda na sua avó. Não vou garantir nada, porque não sou a médica do caso, mas acho que, com o laudo que eu vou dar aqui, sua avó já vai poder ter alta e ir pra casa”.
Raul mal podia se conter de tanta alegria. O laudo, que deveria levar dias, foi impresso ali mesmo, em troca apenas de um “por favor, não conte pra ninguém”. Promessa feita à médica, Raul saiu dali com o laudo na mão e entrou na ambulância de volta pro hospital. No caminho, ligou para a namorada,. Explicou que conversara com a médica e tivera sucesso na empreitada.
“Mas como assim, você conseguiu o laudo? Esse negócio não sai com menos de uma semana, que eu sei!”, perguntou assim, com o tom de voz elevado, a namorada ciumenta. Como Raul era daqueles que perdia a namorada, mas não perdia a piada, respondeu com seu humor de adolescente:
“Sabe como é, né? Ela disse que me dava o laudo na hora em troca de alguns favores sexuais. Então…”.
A namorada, obviamente, não gostou nada da brincadeira. O silêncio do outro lado da linha denunciava que seu rosto estava passando por uma transição entre todas as cores da natureza, até estacionar no vermelho-fúria. Desligou o telefone na cara do sujeito e deixou-o na geladeira por uma semana.
E foi assim que Raul descobriu que a vida adulta trazia consigo um frágil equilíbrio entre cuidar de quem se ama e não ser vítima das próprias fanfarronices…