Muito já se escreveu aqui sobre o golpe bolsonarista que visava a impedir a posse de Lula em 2023. Dos aspectos jurídicos, já se explicou, por exemplo, a diferença entre cogitação e consumação no âmbito do tipo penal que descreve tentativa de abolição do Estado de Direito como crime. De lá pra cá, muito foi revelado pela PF acerca dos pormenores da trama golpista. Descobriu-se até um plano de assassinato de Lula, Alckmin e Xandão por integrantes das Forças Especiais do Exército.
Do ponto de vista probatório, a coisa está feia para o lado do ex-presidente. Com a divulgação do indiciamento feito pela Polícia Federal, agora se sabe que houve uma reunião do Palácio da Alvorada em que Bolsonaro e seu então ministro da defesa, o General Paulo Sérgio, mostraram aos comandantes das três armas a famosa “minuta do golpe”. Nessa reunião, os comandantes do Exército e da Aeronáutica refugaram a virada de mesa. Somente o comandante da Marinha, Almir Garnier, teria concordado em embarcar na aventura golpista.
Sem ter como refutar nem a existência da minuta, nem muito menos a reunião com os chefes das Forças Armadas, restou a Bolsonaro, do alto de um trio elétrico no Ustrapalooza de fevereiro deste ano, gritar o seguinte: “Golpe usando a Constituição?!? Tenha a santa paciência!” Para além disso, Bolsonaro disse por mais de uma vez que “pode pensar o que quiser”, pois, se não houve ação prática, ele não poderia ser punido por isso.
Mas será?
Na verdade, não é bem assim.
Quem se digna a ler a “minuta do golpe” verifica coisas no mínimo curiosas. A primeira delas vem logo no art. 1º da tal minuta. Ela decreta “Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral”. Pra quê? Para “garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022”. E quem ficaria responsável por verificar essa “lisura”? Uma suposta “Comissão de Regularidade Eleitoral” (art. 5º da minuta). Do ponto de vista constitucional, nada do que está ali faz qualquer sentido.
Pra começo de conversa, o Estado de Defesa é uma medida excepcionalíssima, destinada a restaurar a ordem pública em situações de emergência. Desde quando derrota eleitoral configura uma situação de emergência? Mais que isso. Como decretar Estado de Defesa somente “na sede do TSE”? Embora ele tenha de ser, por definição, limitado geograficamente, não há como se conceber uma medida dessa natureza aplicada somente no espaço físico da sede de um tribunal.
Como se isso não bastasse, nada a justificaria a transferência das competências jurisdicionais do TSE para a tal “Comissão de Regularidade Eleitoral”, cujos integrantes seriam escolhidos a dedo pelo então presidente. Não há, em qualquer parte do texto constitucional, autorização para que se anule uma eleição por mera discordância quanto ao seu resultado. Recursos, se houver, devem ser aqueles previstos em lei. E a única autoridade a quem a Constituição atribui competência para julgá-los é justamente aquela sobre a qual se pretendia intervir: o Tribunal Superior Eleitoral. Logo, a menos que se queira produzir uma nova teoria constitucional, a “argumentação” de Bolsonaro não faz o menor sentido.
Na verdade, o que a “minuta do golpe” pretendia era tão-somente vestir com roupagem jurídica um clássico golpe de Estado. “Papel aguenta tudo”, reza o ditado. Quando se trata de Direito, esse adágio é elevado à décima quinta potência. Em todos os países, em todas as épocas, toda a vez que alguém pretende investir contra a democracia, sempre aparece um “jurista” disposto a conferir verniz de legalidade à virada de mesa. O caso do golpe bolsonarista é apenas mais um dentre vários. Portanto, se a linha de defesa de Bolsonaro for mesmo por aí, convém a ele já ir encomendando o pijama da Papuda.
Porque em Brasília faz muito frio no inverno…