Nunca gostou de frescuras, muito menos de protocolos ritualísticos. Para ele, a pompa dos grandes eventos não passava de uma grande celebração do nada, um vazio material destinado a preencher o vazio do ego de uma vida recheada de vazio. Se isso não bastasse, sua alma pernambucana trazia consigo uma certa irritação com gente que gosta de dar muita atenção a isso. Raul definitivamente não fazia o tipo “arroz de festa”.
Mesmo tendo crescido na vida, seu horror às cerimônias do high society não mudou de tamanho. Aliás, isso não é particularmente exato. Talvez a ojeriza tenha até aumentado, dada a frequência com a qual passou a ser convidado para aqueles rega-bofes que costumam fazer a festa de carreiristas e sovinas, cujo deslocamento é justificado apenas pela intenção de descolar uma boca livre. Sim, Raul era o cara high profile mais low profile que existia.
“A comida lá é muito boa”, costumava comentar algum amigo mais próximo, na vã tentativa de convencê-lo a deslocar-se até o evento.
“Comida eu tenho em casa”, cortava Raul na lata, sem dar espaço para convencimentos.
Certa feita, no entanto, Raul não conseguiu escapar do convite.
Como ocupasse um cargo de relevo na estrutura estatal, fora chamado para representar um determinado secretário na cerimônia de transmissão de cargo na Região Militar do seu Estado. O problema? Conhecido pelas suas posições radicais, Raul sempre nutriu um desprezo profundo por boa parte do pessoal de farda. Pior. Nos anos Bolsonaro, sua fama como “opositor do regime” se espalhara nos círculos militares, a ponto de tornar-se verdadeira persona non grata nos quartéis.
Até aí, Inês é morta, porque Raul estava verdadeiramente cagando e andando para os milicos que o receberiam. Os anfitriões, contudo, guardaram mágoa dos anos de críticas públicas. Por mais de um intermediário, os responsáveis pelo evento fizeram chegar aos ouvidos do Secretário que faziam muita questão da presença dele. Mas, caso ele realmente não pudesse comparecer, que mandasse qualquer um no seu lugar. Só não podia, claro, ser o Raul.
Político por natureza, o Secretário fez ouvidos de mercador e fingiu não entender o recado enviado pelos intermediários. Além de não querer entrar no meio dessa briga, ele nutria real simpatia por Raul e não queria vê-lo “vetado” por gente a quem ele não era sequer subordinado. Além disso, conhecedor do seu temperamento mercurial, o Secretário temia por alguma explosão de fúria de Raul ao saber da rejeição ao seu nome na caserna. Para evitar maiores dissabores, arranjou uma viagem oficial ao exterior de última hora e mandou-se para a Europa, longe da confusão.
Na sede do Comando, os militares ficaram numa sinuca de bico. Como o Secretário estava incomunicável e seus intermediários não tinham tido sucesso em “desconvidar” o seu substituto, só restava uma alternativa: confrontar a fera de frente. E por “de frente”, entenda-se: fazer uma ligação direta para Raul (coragem, afinal, nunca foi o forte dessa galera).
O chefe da Região, então, resolveu pagar missão ao seu mais agressivo subordinado, o Coronel Matias. Conhecido pelas grosserias, Matias detestava os paisanos na mesma medida em que era detestado por eles. Fazia o tipo do militar viúvo da ditadura, saudoso de um tempo em que podia prender e arrebentar quem quisesse, pois nada lhe aconteceria. O general estava seguro de que o Coronel saberia “passar o recado” a Raul:
“Bom dia, Sr. Raul. Aqui quem fala é o Coronel Matias, chefe do cerimonial da Região Militar”, disse secamente, sem sequer oferecer a cortesia do “tudo bem?”.
“Pois não, Coronel? Pode dizer”, devolveu também em seco Raul.
“O senhor está sabendo da cerimônia que haverá amanhã aqui na sede do Comando. Sabemos que o Secretário designou o senhor para representá-lo. Mas, em pesquisas feitas pelo pessoal da Região, verificamos que o senhor fez algumas críticas aos militares. Isso causou um grande mal estar aqui na caserna”, explicou o Coronel.
“E….?”, limitou-se a responder Raul.
“….E eu queria saber se, mesmo sabendo disso, o senhor ainda vai comparecer à cerimônia”, falou um aturdido Coronel Matias.
“Vou, claro”, respondeu Raul, sem dar margem a tergiversações.
“E como o senhor espera ser recebido aqui na Região, quando o senhor chegar?”, indagou o Coronel Matias, usando um tom a um só tempo misterioso e ameaçador.
“Com todas as honras que o protocolo me concede, Coronel!”, encerrou Raul, exclamando.
E foi assim que o Coronel Matias aprendeu a respeitar o cerimonial…