Higiene bucal – Parte I

Poucas coisas podem ser piores para um ser humano do que viver numa ditadura. Para quem é do Direito, então, a coisa fica ainda pior. Com a legalidade posta de lado, todo o trabalho jurídico sempre fica condicionado aos limites impostos pelo regime de exceção. Toda vez que se contraria alguém poderoso ou se chega perto de algo que não se deve chegar, um Judiciário em regra leniente com o autoritarismo acaba jogando o trabalho do advogado todo no lixo, prestando tributo à avacalhação.

Não foi diferente, portanto, quando a geração que chegou à faculdade na metade dos anos 60 se deparou com a ditadura militar. Nesse contexto, havia basicamente duas opções: a primeira, mais ousada, era empreender uma ousada resistência, batendo de frente com o sistema anti-jurídico e arriscando sua carreira e/ou sua vida; a segunda, muito mais indolor, era simplesmente se fingir de morto e tocar o barco como se nada estivesse acontecendo.

Mas, entre essas duas grandes categorias, havia espaço ainda para uma terceira, muito mais infame: a dos carreiristas adesistas. Para o carreirista adesista, não bastava simplesmente fazer a egípcia e seguir em frente. Era preciso mostrar-se útil e subserviente aos milicos. Se necessário, era possível até dedurar amigos ou conhecidos. Só assim, pensava a criatura dessa categoria, seria possível subir mais rápido e com mais sucesso na vida. Era exatamente o caso de Átila Carreiro.

Criado numa família de militares, Átila nunca demonstrou qualquer antipatia pela ditadura. Muito pelo contrário. Saudara-a como “salvação” do país contra a “ameaça comunista” empreendida pelos “vermelhos”. Era inegável que ele havia chegado com méritos à faculdade de Direito de uma determinada capital nordestina. Mesmo assim, seu ar sonso e despretensioso escondia uma mente sórdida, capaz de vender a própria mãe ao diabo se assim entendesse conveniente.

O problema, claro, era que nem todo mundo na faculdade era como Átila. Walter Bandeira Filho era, na verdade, seu exato oposto. Oriundo de uma família com tendências marxistas, Walter fizera fama como agitador desde os tempos de colégio. Ao chegar na faculdade, tentava transformar sua inconformidade natural com as coisas numa força que o movia pra frente, buscando em cada vírgula das leis uma forma de tentar amainar a injustiça que, indignado, via grassar ao seu redor.

Como se isso não bastasse, Walter Bandeira (o pai) era o diretor da Faculdade. Famoso por ter defendido os “comunistas” perseguidos na ditadura Vargas, Bandeirão – como era conhecido – era um alvo óbvio para a repressão do regime de 64. Mas, cortesia da sua dignidade e do respeito que angariara por sua carreira imaculada, nem mesmo os gorilas se atreviam a mexer com ele.

Tudo mudou, no entanto, em dezembro de 68. Se até então vivia-se o que o Elio Gaspari descrevia como uma “ditadura envergonhada”, com o AI-5 a ditadura escancarou-se de vez. Fechado o regime, o primeiro passo era expurgar e cassar os “inimigos da Revolução”. Foi a oportunidade perfeita para Átila Carreiro demonstrar sua “lealdade” aos milicos.

Valendo-se de uma intrincada rede de amigos, Átila conseguiu reunir uma espécie de dossiê contra Bandeirão. Declarações contra a ditadura, atos administrativos que rejeitavam a influência militar na faculdade, tudo que pudesse denunciar o “esquerdismo” do Bandeirão servia para compor esse libelo acusatório. Não havia nada de substancial nele, mas era o suficiente para identificá-lo como “comunista”. Foi o que bastou para lhe cassarem o cargo de Diretor da Faculdade. Bandeirão continuou a advogar, mas nunca se recuperou completamente do baque de ter perdido o cargo de diretor.

Walter Bandeira Filho jamais engoliu o ardil montado por Átila. Se antes eles eram apenas rivais ideológicos na Faculdade, a “denúncia” armada contra seu pai transformou Átila em seu inimigo eterno. Prometera a si mesmo que, quando tivesse oportunidade, vingaria a honra do pai. E a oportunidade surgiu 30 anos depois.

To be continued…

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