Dando início a esta semana de análise da vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, vamos começar pela mais óbvia das perguntas: por que os democratas perderam?
“Como assim, os democratas perderam? Não foi Trump que ganhou?”
Sim, você não entendeu errado. Trump não ganhou. Foram os democratas que perderam. Os analistas mais apressados foram logo colocando Kamala Harris na fogueira, como se a responsabilidade pela débâcle democrata recaísse sobre seus ombros. É o tipo de racismo e misoginia que os eleitores do Laranjão costumavam usar com ela antes da eleição. Se há alguém que não pode ser responsabilizado nessa história é justamente Kamala Harris, sobre cujos ombros recaiu a bucha de ver-se candidata contra um ex-presidente a pouco mais de 100 dias da eleição.
Não se pode atribuir a derrota eleitoral a Kamala Harris, em primeiro lugar, porque o desastre dos democratas não se limitou à derrota na corrida pela Casa Branca. O antigo GOP fez barba (presidência), cabelo (Câmara dos Representantes) e bigode (Senado). Trata-se de uma façanha que não se ocorria há vinte anos, quando um então candidato à reeleição George W. Bush bateu um insosso John Kerry na esteira da Guerra do Iraque. E não adianta nem falar mal do sistema eleitoral norte-americano. Foi também nessa mesma eleição, há exatas duas décadas, que os republicanos ganharam pela última vez no voto popular (desconsiderando-se o resultado do colégio eleitoral).
Aqui talvez resida o grande “segredo” escondido dessa eleição. Enquanto todas as pesquisas projetavam uma disputa acirradíssima – o famoso toss up (jogar a moedinha pra cima) -, quando as urnas foram abertas o que se viu não foi exatamente uma avalanche de votos em favor de Trump, mas uma absoluta ausência de votos a favor dos democratas. Enquanto Joe Biden batera o ex-apresentador de O Aprendiz em 2020 com 81 milhões de votos contra 74 milhões de Trump, na eleição de agora o Nero Laranja obteve 75 milhões, só 1 milhão a mais do que no último pleito. Os democratas, ao revés, conseguiram produzir a mágica de fazer desaparecer 10 milhões de votos a seu favor, eis que Kamala Harris amealhou somente 71 milhões de eleitores.
Mas os democratas perderam, afinal, por quê?
Entre outros motivos, porque foram apontados como responsáveis pela alta da inflação. Boa parte dessa responsabilização é injusta, porque o efeito inflacionário de agora deriva das ações de injeção maciça de dinheiro efetuadas pelo FED durante a pandemia. Pro eleitorado que não está nem aí pra macroeconomia, pouco importa. Se os preços aumentaram agora, a culpa é do governo. E quem está no governo? Os democratas.
Por isso mesmo, houve um claro erro de direcionamento da campanha de Harris. Enquanto a candidata e sua trupe falavam – corretamente – do risco que seria levá-lo de volta à Casa Branca, Trump vociferava contra uma inexistente crise econômica na terra do Tio Sam. Baseado na mais escancarada plataforma populista, o ex-apresentador de O Aprendiz prometia mandar a China, os estrangeiros e os democratas – não necessariamente nessa ordem – ao raio que os partisse; eram eles os responsáveis pela pobreza do cidadão branco, pobre, evangélico, sem ensino superior, que compõe a grande massa do eleitorado ianque. Por mais doloroso que seja, o fato é que esse pessoal não está nem aí pra democracia. Só querem saber de coisas concretas: emprego, casa própria e dinheiro no bolso. Esse foi, fundamentalmente, o grande erro dos democratas.
Feito o estrago, a pergunta que resta é: e agora?
Do ponto de vista estritamente estadunidense, não há muito o que se possa fazer. Além do domínio total do Congresso, Trump ainda vai contar com o beneplácito da Suprema Corte norte-americana. Contando com a super maioria conservadora de 6×3, essa mesma Suprema Corte já lhe concedeu, antes da eleição, um benefício semelhante ao medieval the king can do no wrong, o que lhe garante virtual imunidade contra qualquer tipo de perseguição judicial por atos cometidos enquanto estiver na presidência. Tendo garantido ao Laranjão um mimo de fazer inveja a qualquer rei absolutista do século XV, é difícil acreditar que o Judiciário norte-americano venha a servir de trincheira contra os arroubos trumpistas.
Não dá sequer pra contar com a perspectiva de este ser um desastre limitado no tempo. De acordo com a 22ª emenda à Constituição americana, nenhum cidadão pode ser eleito mais de duas vezes ao cargo de presidente. Donde, em tese, Trump somente poderia cumprir mais um termo na Casa Branca. Entretanto, como lá não há TSE, o Laranjão simplesmente poderia lançar-se candidato de novo, sob o argumento de que, na verdade, o texto da emenda quereria limitar “dois mandatos consecutivos”, e não dois mandatos ao todo. Com uma Suprema Corte tão, digamos, “benevolente”, nada impede que ele venha a ter sucesso nesse intento.
Em razão disso, imaginará mal quem achar que todas as estultices que o Nero dos nossos tempos promoveu na campanha ficarão no discurso. É o mesmo tipo de autoengano que levou certa elite brasileira a se abraçar a Jair Bolsonaro, acreditando que ele se tornaria um “moderado” quando assumisse o cargo. Donald Trump sofreu dois impeachments, respondeu a 6 ações criminais e foi condenado em uma desde quando deixou a presidência. Seria por demais ilusório pensar que um sujeito de 78 anos, tendo passado por tudo isso, não faria de tudo para se “vingar”. Mimado e alucinado com a própria imagem, nada indica que o Laranjão deixará de cometer todas as atrocidades previstas durante a sua campanha. Afinal, foi exatamente isso que ele prometeu. E foi exatamente isso que o eleitorado norte-americano quis eleger.
God bless America.