Com a batalha entre Xandão e Elon Musk atingindo o ponto de ebulição, talvez seja uma boa hora para revisitar um post do começo da década, sobre um documentário que expõe os meandros através dos quais as redes sociais mexem com a nossa mente.
É o que você vai entender, lendo.
The Social Dilemma, ou Qual o problema das redes sociais?
Publicado originalmente em 30.9.20
Desde a semana passada, estourou na boca do povo uma das mais recentes produção da Netflix. Ao contrário do que o senso comum ditaria, não se trata de um filme de suspense aterrorizante, como Bird Box, ou um épico cheio de estrelas hollywoodianas, do naipe de um O Irlandês. Não, não. Dessa vez, a grande estrela do sistema de streaming mais famoso do momento é – acredite você – um documentário: The Social Dilemma.

O tema, claro, não poderia ser mais atual. As redes sociais revolucionaram nossa forma de interação e vêm redefinindo o próprio conceito de relação social desde pelo menos a metade da década passada. Com a pandemia, sua função cresceu exponencialmente, a ponto de, hoje, ser virtualmente impossível encontrar alguém que não tenha um perfil conectado a pelo menos uma delas.
O documentário começa de forma enigmática: “Qual o problema?”, pergunta o locutor à mais dezena de entrevistados que compõem o mosaico do filme. Entre risos sem graça e olhares perdidos para o alto, a pergunta fica em aberto e nunca chega a ser verdadeiramente respondida pelos documentaristas. E vamos sendo apresentados, passo a passo, às entranhas das redes sociais.
O ponto principal de todo o documentário é a estruturação de um sistema que busca uma coisa – e uma única coisa – de seus usuários: a atenção. Através do desenvolvimento de logaritmos e recursos tecnológicos avançadíssimos, as redes sociais elaboram métodos que se destinam não somente a chamar a atenção do internauta, mas, sim, a “viciá-lo” naquilo. A idéia é que uma coisa puxe a outra, de maneira que o sujeito que ia encerrar seu passeio virtual olhe para si mesmo e diga: “Só mais esse…”, ou “Só mais um pouquinho…”
Mas por que tanta tecnologia envolvida na elaboração de mecanismos destinados a, literalmente, prender a atenção do usuário?
É aí que o documentário brilha. “Quando você não paga pelo produto que você está usando, então você é o produto”. Apontando didaticamente o sistema de funcionamento das redes sociais, os documentaristas explicam como o ser humano acabou transformado numa espécie de bem natural do qual redes como Facebook, YouTube e Twitter extraem a grande commodity dos tempos modernos: a atenção.
Por quê?
Porque é através da atenção que você dispensa a determinado conteúdo que os logaritmos das redes sociais conseguem extrair quais são os seus interesses pessoais. E quando alguém que sabe transformar os seus inocentes cliques ou os seus segundinhos preciosos gastos em um vídeo do YouTube em predisposição a compras, viagens ou relacionamentos, o resultado é um só: dinheiro, muuuuiiiitttooo dinheiro.
Até aí, nada de mais, pode estar pensando você. Afinal, a busca pelo dinheiro está presente desde que o mundo é mundo, e o que as redes sociais estariam fazendo não seria muito diferente do que as agências de propaganda fizeram durante todo o século XX, por exemplo.
A questão é que, para alcançar esse objetivo de prender a atenção do usuário, as redes sociais costumam desenvolver instrumentos através dos quais o sujeito fica confinado numa espécie de bolha, na qual ele só tem acesso a quem fala, sente e pensa exatamente como ele. A mimetização do pensamento é a forma mais simples e eficaz de fazer com que o sujeito sempre caia na tentação de dar “só mais um clique”, ou assistir a “só mais um vídeo”. Por que quem iria querer continuar em um lugar onde alguém te contrariasse o tempo todo, não é mesmo?
Não por acaso, o mundo de hoje é o mais dividido, polarizado e instrumentalizado de todos os tempos. No mundo das bolhas virtuais, os fatos são transformados em “narrativa”, e a “verdade” passou a ser apenas uma questão de “opinião”. E dá-lhe teorias malucas como Terra plana, Pizzagate ou a famosa “conspiração globalista do marxismo cultural”, liderada pelo Papa, com auxílio luxuoso dos onipresentes Bill Gates e George Soros. Isso para não falar, claro, do ídolo máximo dos conspiradores internéticos: Leonardo Di Caprio.
The Social Dilemma desenvolve-se de maneira elegante, tratando um tema áspero de forma bastante leve. Em que pese a inteiramente dispensável encenação teatralesca que margeia os depoimentos dos especialistas, o documentário é bem enxuto e não deixa nada a dever aos melhores do gênero. Melhor que isso, traz o depoimento – e, às vezes, o arrependimento sincero – de altos executivos responsáveis por montar essa mesma estrutura cujo uso agora eles recomendam evitar.
“Qual o problema?”, pergunta o documentário.
“O problema é o homem”, conclui qualquer um que o assista.
Abaixo, o trailer oficial do filme, para quem estiver interessado.