Much ado about nothing, ou O não-escândalo do vazamento das mensagens de Alexandre de Moraes

A história é antiga, mas vale recontá-la:

Benedick ama Beatrice que ama o próprio Benedick, mas nenhum dos dois acredita no amor, no casamento e, pior, vivem às turras um com o outro. Os amigos dos dois resolvem fazer o papel de cupido. Enquanto isso, Dom João de Aragão resolve sabotar o casamento marcado de Cláudio e Hero. Sua idéia é beijar Margarida, uma das criadas de Hero, na sua frente, de modo que ele pensasse que ele estava a beijar a própria Hero. Benedick e Beatrice saem em defesa de Hero, e é nesse momento que descobrem verdadeiramente a paixão existente entre eles. No final das contas, o plano maligno de Dom João malogra, Cláudio e Hero se casam, e Benedick e Beatrice vivem felizes para sempre.

Desde então, o título da deliciosa comédia de Shakespeare ficaria marcado para sempre como sinônimo de situações nas quais um monte de confusão despropositada acaba se sucedendo sem razão aparente, para então terminar em nada. Sem a graça do Bardo e certamente sem a elegância do seu texto, tal é o nível de alienação da realidade no caso do vazamento das mensagens dos assessores de Alexandre de Moraes que é difícil não traçar um paralelo com a obra de Shakespeare.

Segundo reportagem da Folha de São Paulo, assinada por Glenn Greenwald – o mesmo jornalista responsável pela Vaza-Jato -, assessores do Ministro Alexandre de Moraes trocavam mensagens entre si, sugerindo algo espúrio na produção de relatórios do setor de combate à desinformação do TSE. De acordo com o jornal, as mensagens indicam que os relatórios eram feitos a pedido de Moraes, como presidente do TSE, para abastecer o inquérito das fake news, dirigido pelo próprio Xandão no STF.

Numa leitura absurdamente apressada e – por que não dizer? – juridicamente ignorante, a Folha e seus repórteres publicaram a matéria como se fosse um grande escândalo. Afinal, o material indicaria que um Ministro do Supremo estaria a produzir provas contra réus, para depois despachar em processos contra eles. A imparcialidade que se esperaria de um juiz estaria maculada pelo suposto viés persecutório de Xandão. Todo o trabalho contra o golpismo da Bozolândia estaria, sob essa ótica, em risco.

Nada mais equivocado.

Antes de mais nada, deve-se destacar que os tais “relatórios” produzidos pelo setor responsável do TSE não passavam de cópias de postagens produzidas por elementos e influencers da extrema-direita. Ou seja: tratava-se de “provas” de domínio público, acessíveis a qualquer pessoa que tivesse acesso à Internet ou a redes sociais. Não havia nada de verdadeiramente sigiloso no conteúdo desses relatórios. Os assessores simplesmente compilavam o que havia sido publicado e posteriormente os remetiam ao Supremo.

Como a própria Folha fez questão de dizer no dia seguinte à publicação da matéria (risos irônicos), não havia qualquer ilegalidade nesse procedimento. Uma vez que Alexandre de Moraes era Presidente do TSE, estava mais do que em seu poder e sua alçada determinar a assessores a produção de conteúdos dessa natureza. Como todo segundanista de Direito sabe, a Justiça Eleitoral possui uma função sui generis em nosso ordenamento, tendo entre suas atribuições o poder-dever de atuar de ofício quando presente alguma ilegalidade que possa colocar em risco o processo eleitoral.

O “problema” – ou a curiosidade, para ser mais exato – era que os relatórios produzidos a mando de Xandão como Ministro do STF eram enviados pro mesmo Xandão que comandava os inquéritos contra as fake news. Algum desavisado poderia tirar daí alguma mácula à parcialidade de Alexandre de Moraes, mas é evidente que tal mácula não existe.

Do modo com o qual está estruturada a justiça criminal nas cortes superiores, é papel do relator presidir os inquéritos que lhe forem distribuídos. Enquanto no primeiro grau, quem preside o inquérito é o delegado de polícia, no STJ e no STF quem o presidente é o próprio ministro-relator. Fora isso, é também do próprio texto constitucional tanto a atribuição de poder de polícia aos juízes eleitorais, como a participação de três juízes no Supremo na composição do TSE (com o presidente e o vice obrigatoriamente sendo ministros da Corte Suprema).

Tudo considerado, espremendo-se a laranja, o que se tem?

Um presidente de Tribunal Eleitoral, atuando com o poder de polícia que a Constituição e a lei lhe outorgam, determinando a assessores diretos a compilação de postagens públicas contra o sistema eleitoral. Esses mesmos relatórios eram depois enviados ao Supremo, onde eram utilizados para coibir ações contra o Estado Democrático de Direito. Por acaso, o mesmo ministro do Supremo responsável por determinar a confecção desses relatórios era o responsável por presidir os inquéritos em que eles foram posteriormente juntados. Pode-se reclamar dessa sistemática, mas é ela quem vigora no nosso sistema.

Trata-se, portanto, da escandalização do nada.

Não por acaso, todos os juristas sérios deste país, sem absolutamente nenhuma exceção relevante, entrevistados pela mesma Folha que publicou o “escândalo”, vieram a público dizer literalmente isso: não há qualquer ilegalidade e a sistemática de atuação do TSE e do Supremo é justamente essa.

Pode ser que a Folha, afoita, tenha embarcado na “barrigada” de Greenwald sem o devido cuidado, pelo simples medo de perder o furo de reportagem. Pode ser, também, que as mensagens que ainda não vieram à tona tragam, de fato, alguma coisa comprometedora acerca do modus operandi de Xandão. Pode ser. No entanto, com o que veio até agora à tona, o “escândalo” das mensagens de Zap dos assessores do Ministro concorre com sobras ao Top 5 do ranking de maiores erros jornalísticos do jornalismo brasileiro.

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

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