Tristes trópicos, ou A farsa da eleição venezuelana

Da onde menos se espera, daí é que não vem mesmo. Tal é a sensação de quem ainda nutria um fiapo de esperança com a eleição levada a cabo na Venezuela neste último domingo.

Com a assinatura dos acordos de Barbados, em outubro do ano passado, quando Nicolas Maduro aceitou submeter-se a um pleito para referendar ou não a continuidade da ditadura que vem desde o falecido Hugo Chávez, a comunidade internacional esperava que alguma coisa mudasse por aquelas bandas. E de fato mudou. Só que para pior.

Verdade seja dita: Maduro já tinha dado todos os sinais de que, por pior que fosse a ojeriza que a população nutria ao regime chavista, não estava disposto de forma alguma a deixar o poder. Desde a assinatura do acordo de Barbados, a ditadura venezuelana operou, sucessivamente: 1) a exclusão da principal opositora do pleito (Maria Corina Machado); 2) a rejeição da inscrição como candidata de sua sucessora imediata (Corina Yoris); e 3) ameaçara com um “banho de sangue” caso perdesse a eleição. Admoestado pelo presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, Maduro ainda sentiu-se no direito de tirar onda: recomendou a Lula que tomasse um “chá de camomila” para se acalmar.

Isso tudo, porém, não se compara à verdadeira palhaçada que ocorreu no último domingo. Protagonizando um teatro farsesco, a ditadura venezuelana operou um dos mais primitivos golpes de mão de todos os tempos. Apesar do uso descarado da máquina estatal em favor de Maduro; apesar do impedimento do registro, como eleitores, dos mais de 7 milhões de venezuelanos que se autoexilaram do país para fugir da desgraça promovida pelos chavistas; apesar da intimidação operada por forças policiais em alguns locais de votação contra eleitores da oposição; ainda assim tudo indicava uma derrota maciça de Maduro e seus asseclas.

Qual o problema?

Assim como o sistema eleitoral brasileiro, as urnas na Venezuela são eletrônicas (e, portanto, invioláveis). E, lá como cá, são emitidos comprovantes impressos para que seja possível aferir se a quantidade de votos depositada na urna confere com a quantidade de eleitores que compareceu à sessão eleitoral. Ao que nós chamamos de “boletim de urna”, os venezuelanos chamam de “atas eleitorais”. No fundo, entretanto, trata-se da mesma coisa.

Sabendo que, numa contagem fidedigna, seu governo seria defenestrado pela população cansada de tanta miséria, a ditadura chavista literalmente apelou. Primeiro, sumiu com o site do Consejo Nacional Electoral (CNE, o equivalente ao TSE deles). Depois, alegou que o sítio eletrônico da autoridade eleitoral havia sido derrubado por um “ataque hacker” (risos). Quando, próximo à meia noite, estando claro a toda a gente que Maduro tinha sido derrotado, o CNE declara numa coletiva que, com supostamente 80% das urnas apuradas, o ditador de plantão havia sido reeleito com 51% dos votos. E, por mais que matematicamente a afirmação não fizesse qualquer sentido, o resultado seria “irreversível”.

Mas cadê as atas eleitorais, para provar que Maduro de fato obtivera os votos que o CNE dizia terem sido outorgados a ele?

Ninguém sabe, ninguém viu. Apesar de a própria legislação venezuelana determinar a apresentação das atas para conferência em prazo não superior a 72 horas (qualquer semelhança com as 72 horas dos néscios que esperavam um golpe para recolocar Bolsonaro no poder é mera coincidência), até agora, passados cinco dias do pleito, nem sinal das atas.

A oposição, por sua vez, conseguiu reunir alegados 73% do total das atas eleitorais. Nessa contagem, aí sim, de maneira irreversível, o candidato da oposição, Edmundo González, possui quase 70% dos votos, enquanto Maduro mal chega a 30%. Obviamente, a ditadura venezuelana fez a egípcia e proclamou a reeleição de Maduro, tentando dar ao pastiche todo ares de fato consumado. Cobrado, Maduro chegou ao cúmulo do cinismo ao, referindo-se às atas eleitorais, citar o Evangelho de João para dizer que são “bem-aventurados aqueles que creram sem terem visto” (Jo 20:29)

O problema, claro, é que um problema não vai embora simplesmente se você fingir que ele não existe. Assim como o resto da humanidade não chavista, todo mundo pede a exibição das atas eleitorais para reconhecer a vitória de Maduro. Hoje mesmo, em um comunicado conjunto, Brasil, México e Colômbia publicaram uma nota nesse sentido. Os Estados Unidos, por sua vez, já foram mais longe, e reconheceram Edmundo González como vencedor do pleito.

A essa altura do campeonato, seria de uma ingenuidade atroz acreditar que essas atas ainda venham a aparecer. Se não deu cabo a elas, a ditadura venezuelana deve estar em busca de forjar outras para substituir as originais, que certamente dão a vitória à oposição. A Maduro e seus asseclas chavistas, portanto, não resta outra alternativa senão fechar de vez o regime.

E é exatamente isso o que eles estão fazendo. Com o apoio dos mesmos militares mamateiros que se assenhoraram de praticamente toda a estrutura estatal, Maduro mandou descer o cacete na oposição. Onze já morreram e outros setecentos foram presos. Um dos líderes da campanha oposicionista foi sequestrado por forças policiais. Acusa-se que ele foi submetido a tortura. Maria Corina Machado e outros opositores encontram-se escondidos, com receio de que se lhes passe o mesmo. Hoje, Maduro acusou-os de “incitar um golpe de estado” (risos) e anunciou a criação de “centros de reeducação” para os insolentes adversários que tiveram a ousadia de lhe vencer nas urnas.

Ao Brasil, principal fiador dos acordos de Barbados, restou o triste destino de fazer mais uma vez o papel de bobo diante das promessas vazias de um autocrata latinoamericano. Podendo se afastar do flagelo venezuelano, primeiro o PT e depois o Presidente Lula, preferiram congratular o “presidente reeleito da Venezuela” e dizer que o que estava se passando no país era “algo normal, tranquilo”. Eleitos numa disputa apertadíssima, Lula e o PT acharam melhor dar um tapa na cara de quem neles votou para defender a democracia.

A verdade é que a esquerda latinoamericana nunca foi grande fã dos regimes democráticos. A adoração medieval ao decadente regime cubano é o exemplo mais bem acabado disso. A tal da “democracia burguesa” não passa de um instrumento ordinário, manipulado pelas “elites dominantes” para “dominação e espoliação das classes trabalhadoras”. Fundados no mais infantil anti-americanismo de sempre, essa esquerda jurássica adora dizer que faz tudo isso em defesa do povo.

Resta, contudo, explicar uma coisa:

Se de fato eles defendem o povo tanto assim, por que lhe negar o direito de escolher quem o governa?

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