Depois de uma semaninha de merecidas férias, vamos tentar resumir a sucessão de plot twists na corrida presidencial da Roma dos tempos modernos, a fim de que o leitor amigo não fique a boiar em análises superficiais sobre os impressionantes eventos dos últimos 15 dias. Para melhor entendimento, vamos dividir esse post em três partes:
1 – O atentado a Donald Trump
Em um país onde já morreram quatro presidentes em exercício (Lincoln, Garfield, McKinley e JFK), dois foram feridos em atentados (T. Roosevelt e Reagan) e mais dois foram tirados de combate enquanto ainda eram candidatos (Bob Kennedy e George Wallace), não dá pra dizer que foi propriamente uma surpresa o atentado ao Laranjão ex-apresentador de O Aprendiz. Ainda assim, é chocante quando se assiste, ao vivo e em cores, o que o ódio político pode fazer com a cabeça de uma pessoa transtornada.
Por óbvio, deve ser imediatamente descartada a hipótese de encenação da tentativa de assassinato deve ser descartada. É claro que toda a sequência posterior ao tiro – em especial o fato de o pessoal do Serviço Secreto ter permitido a Trump se levantar e deixar a cabeça exposta a um novo tiro, e a foto dele com o punho em riste com a bandeira americana flamulando ao fundo – levantaram alguma suspeita sobre um teatro macabro com propósitos eleitorais.
Todavia, os fatos posteriores desmentem por completo qualquer chance de que semelhante coisa tenha se passado. A menos que alguém queira sugerir ser possível a um atirador postado a 150m do alvo, portando uma AR-15, atingir a ORELHA de uma pessoa, tal hipótese não tem como ser levada a sério. Mais que isso. O atirador ainda teria que ter sabido com antecedência que Trump inclinaria a cabeça naquele exato instante, sem o que o projétil teria lhe atingido na têmpora direita, provavelmente com resultados fatais.
Como era de se esperar, os mais emocionados “analistas” da mídia brasileira traçaram um paralelo imediato com a facada sofrida por Jair Bolsonaro em 2018, para daí concluir, apressada e equivocadamente, que Trump estaria eleito. Tal qual teria ocorrido com o ex-capitão do Exército, o atentado serviria como um boost nas corrida presidencial, catapultando-o diretamente ao assento mais poderoso do planeta.
Nada mais equivocado. Nem Trump é Bolsonaro, nem os Estados Unidos são o Brasil, nem 2018 é 2024. Em 2018, o atentado a Bolsonaro garantiu duas coisas essenciais naquele pleito: 1 – “imunidade” contra críticas ao seu comportamento pessoal e político (não pegaria bem a qualquer adversário falar mal de alguém que acabara de sofrer uma tentativa de homicídio); e 2 – com a gravidade da lesão, Bolsonaro pôde fazer a campanha da cama, isto é, de dentro do hospital, calado, sem qualquer pronunciamento público, protegido pelo atestado médico. Para tirar o PT da jogada, o eleitor brasileiro literalmente topou dar um salto no escuro.
Agora, não. Por sorte, o ferimento de Trump não foi grave a ponto de incapacitá-lo para a campanha. Além disso, Trump não é um deputado obscuro do baixíssimo clero congressual. Ele é ex-presidente. Não se trata de uma tela em branco que um Posto Ipiranga do tipo Paulo Guedes possa colorir ao público ao seu bel prazer, para esconder os horrores que só um Doria Gray redivivo poderia explicitar. Todo mundo conhece de cor e salteado os seus defeitos, dentre os quais a incitação ao ódio político do qual agora ele (quase) foi vítima.
Não há, portanto, qualquer base real para comparar os episódios de Bolsonaro em 2018 com o de Trump agora.
2 – A desistência de Joe Biden
Da mesma forma que o atentado de Donald Trump, tampouco se pode dizer que a desistência de Joe Biden tenha sido exatamente uma surpresa. Por mais que os precedentes históricos sejam virtualmente nulos – a desistência de Lyndon Johnson em 1968 se deu antes das primárias, enquanto Biden já tinha assegurado a indicação dele -, a débâcle televisionada do atual inquilino da Casa Branca no debate com Donald Trump indicara que não havia outra alternativa para os democratas.
Tal qual foi previsto aqui, entre a derrota certa com Biden e uma tentativa qualquer de tentar salvar a corrida para o Partido, os democratas preferiram a segunda opção. Melhor para todo mundo.
3 – Kamala Harris. E agora?
Desde antes da formalização da desistência de Joe Biden, sua atual vice, Kamal Harris, figurava como virtual sucessora do octogenário presidente norte-americano. As razões para isso são várias. Desde a mais óbvia (ela é vice dele, logo, sucessora natural), passando pela mais pragmática (por já figurar na mesma chapa, ela poderia legalmente usar as verbas de campanha já arrecadadas), até chegar na mais otimista (imigrante, negra e com origem asiática, ela seria uma candidata de vitrine em qualquer lugar), tudo indicava que a opção mais rápida e indolor para os democratas seria mesmo elevar Kamala à cabeça da chapa presidencial.
Uma vez “indicada”, Kamala Harris não perdeu tempo. Em menos de 24h, ela reuniu a quantidade de delegados necessária para ser indicada na convenção democrata. Trata-se da mesma convenção que, até a semana passada, estava destinada a ungir Biden como candidato. De quebra, ela ainda conseguiu levantar quase uma centena de milhões de dólares de doações para a campanha, doações estas que estavam praticamente congeladas desde o desastroso debate de Biden contra Trump, como forma de os financiadores forçarem a desistência de Biden.
Com Kamala como candidata, a coisa toda muda de figura. A carta do etarismo, por exemplo, muda de mãos. Os republicanos, que a toda hora falavam dos 81 anos de Joe Biden, agora vêem o mesmo golpe sendo usado contra os 78 anos de Donald Trump. Para piorar, enquanto Biden não podia acenar claramente com a condenação criminal do ex-apresentador de O Aprendiz – afinal, seu filho Hunter Biden também fora condenado criminalmente – agora Trump vê uma ex-procuradora-geral da Califórnia livre para usá-la contra ele.
Para além disso, a ascensão de Kamala Harris à candidatura presidencial desmonta por completo toda a estratégia articulada pelos republicanos até agora. Eles, que pensavam que iam concorrer contra um ancião em claro declínio cognitivo, representante máximo da “velha política”, agora se vêem às voltas com uma candidata vinte anos mais jovem, com oratória, currículo e disposição para lutar muito superiores ao antigo adversário.
A maior prova disso é o clima de barata-voa instalado no diretório republicano desde que Kamala assegurou sua indicação como candidata democrata. Até agora, nem Trump nem seus aliados conseguiram sequer esboçar uma linha de defesa para tentar atacar os pontos fracos da vice-presidente dos Estados Unidos. As “melhores” estratégias desenvolvidas até o momento foram, pela ordem: 1- criticar a risada da candidata; e 2 – ver seu candidato a vice, JD Vance, dizer que Kamala seria uma daquelas “childless cat ladies who are miserable at their own lives” (mulheres sem filhos que criam gatos, que são infelizes com as próprias vidas). Se isso foi o melhor que os estrategistas republicanos conseguiram produzir até agora, é difícil imaginar salvação para a candidatura de Donald Trump.
Obviamente, Trump continua na condição de favorito. Tem o partido literalmente a seus pés e muito dinheiro de liberticidas como Elon Musk para gastar na campanha presidencial. Ainda assim, é inegável que o momentum é todo de Harris. Por uma dessas ironias da vida, o atentado de Trump – que, na leitura apressada dos “analistas” brasileiros, o teria elegido -, acabou por servir-lhe de veneno. O trauma da tentativa de assassinato acabou por apressar a desistência de Biden e, com isso, o foco da campanha foi rapidamente desviado para a nova candidata democrata, cujo potencial – inclusive nas pesquisas – é muito superior ao do antigo candidato.
Muita água ainda há de rolar até a eleição em novembro. Se, em menos de 15 dias, um dos candidatos sofreu um atentado, o outro desistiu e uma terceira, que nem estava na história, apareceu para concorrer, seria no mínimo presunçoso estimar o que possa acontecer nos próximos 100. Seja lá o que acontecer, há mais motivos para estar otimista hoje do que havia há duas semanas.
Que Kamala e os democratas tenham sabedoria e capacidade suficientes para enfrentar o perigo de uma nova eleição do Laranjão.