Que há uma crise política derivada da absoluta falta de articulação do governo, isso só as avestruzes não vêem. Há pouco mais de um mês, esse diagnóstico foi objeto de um post por aqui. Mesmo assim, de lá pra cá, pouca coisa mudou. E, do pouco que mudou, ainda assim foi para pior.
Do ponto de vista estritamente político, o diagnóstico permanece o mesmo. Lula foi eleito por uma frente ampla, que vai da esquerda mais radical até a direita mais moderada, unicamente para impedir o desastre que seria a reeleição de Jair Bolsonaro. Se, apeado do poder, o bolsonarismo ainda conseguiu articular a Intentona do 8 de janeiro, não é preciso muita imaginação para pensar o que seria do país caso ele tivesse alcançado a reeleição.
Mesmo assim, por cegueira deliberada ou por cacoete, o pessoal do PT resolveu achar que ganhou a eleição sozinho. Ao invés de somar esforços para trazer o que havia de melhor nessa galera mais “liberal”, o pessoal do Partido da Estrela Vermelha parece decidido a expulsar para o outro lado quem esteve junto com ele nas trincheiras para defesa da democracia. Para quem observa a formação do governo e o desenrolar dos acontecimentos desde então, fica parecendo que Lula iria ganhar de qualquer jeito e o pessoal do centro e da direita moderada resolveu juntar-se ao governo por adesismo. Não por acaso, muita gente boa acusa Lula e seu governo de desconexão com a realidade.
Ontem, durante uma sessão do Congresso, foi possível ter um exemplo claríssimo do quão débil é a posição do governo no Parlamento. Não é que a oposição tenha feito barba, cabelo e bigode. Ela fez barba (aprovou o imposto de importação das “blusinhas da Shopee”, coisa que Lula disse que vetaria), cabelo (derrubou o veto das saidinhas), bigode (derrubou vetos ideológicos da LDO), axilas (permitiu clubes de tiro a menos de 1km as escolas) e contorno (manteve o veto de Bolsonaro à criminalização da divulgação maciça de fake news). Em todos os casos, a votação ultrapassou o número necessário para aprovar até mesmo emendas constitucionais (308 votos). Nunca antes na história desse país um governo foi tão humilhado por congressistas.
Como se isso não bastasse, Lula ainda não parece ter se decidido se quer ser “Lula 1 e Lula 2” ou uma versão exótica de “Dilma 3”. De um lado, Fernando Haddad e Simone Tebet tentam dar alguma racionalidade ao ambiente econômico e defendem alguma contenção de gastos por parte do governo. Do outro lado, a ala “desenvolvimentista” segue abraçada com firmeza ao lema “gasto é vida”. O embate entre essas duas alas acaba causando sururu no dólar e nos juros, o que reflete imediatamente na vida real. Sem uma orientação econômica definida, nem mesmo as boas notícias (como a queda do desemprego e da inflação) conseguem ser transformadas em vitórias do governo.
Mais do que as derrotas sucessivas no Congresso, incomoda a sensação de impotência e anomia que o Planalto transmite. Tudo transcorre sob uma atmosfera fatalista, como se nada pudesse ser feito para reverter as derrotas ou, pelo menos, impor algum desgaste à oposição. Ao invés de entrar no ringue como favorito e defensor do título, o governo parece entrar como azarão, de cabeça baixa, como se fosse alguma espécie de sparring legislativo, condenado a apenas para levar socos do adversário.
É evidente que essa perspectiva está errada. Um governo que distribui três ministérios a um partido (União Brasil), não pode vê-lo dar 54 votos contrários e apenas um a favor numa votação decisiva no Congresso. Ou bem o partido integra o governo – respondendo com apoio no Parlamento -, ou é melhor tomar os ministérios de volta e entregá-los a pessoas que possam pelo menos geri-los de forma mais eficiente, sem entrar no esquema do toma-lá-dá-cá político.
É possível que Lula esteja tentando levar tudo com a barriga, até as eleições municipais deste ano e a troca do comando das casas do Congresso no começo do ano que vem. Pode ser. Mesmo assim, é difícil acreditar que a barriga do Planalto esteja suficientemente sarada para empurrar um Congresso abertamente hostil por mais um ano sem que isso implique, por via reflexa, numa deterioração talvez fatal das condições de seu governo.
Ou Lula acorda – e rápido – para a necessidade de reorganizar politicamente e dar um rumo ao seu governo, ou o cenário de pesadelo desenhado aqui vai ganhar contornos cada vez mais concretos.
É esperar pra ver.