Recordar é viver: “Roteiro do golpe, ou Cogitação x Execução no Direito Penal”.

Confesso que não esperava retornar a esse texto tão cedo.

No entanto, depois do que aconteceu ontem, parece evidente voltar a falar sobre o assunto.

É o que você vai entender, lendo.

Roteiro do golpe, ou Cogitação x Execução no Direito Penal

Publicado originalmente em 27.9.23

Eu sei, eu sei.

É chato voltar a esse assunto pela enésima vez, mas, dada a barafunda legal em que se enfiou a imprensa brasileira com os desdobramentos da delação do tentente-coronel Mauro Cid, talvez seja de bom alvitre deitar algumas linhas sobre as fases do delito. Ou, para usar o juridiquês tão caro aos nobres causídicos que cobram os tubos para defender os piores fascínoras, explicar mais ou menos como funciona o iter criminis.

Basicamente, todo e qualquer delito passa pelas seguintes fases: cogitação (quando o sujeito pensa que vai cometer o crime); preparação (quando começa a ver como é que vai implementar a ação criminosa); execução (quando o sujeito começa a colocar em prática o plano delituoso); e, finalmente, a consumação (quando o delito efetivamente ocorre, seja por tentativa, seja por consumação propriamente dita). Explicado isto, podemos tentar entender os perrengues jurídicos pelos quais passarão Jair Bolsonaro e sua trupe nos próximos meses.

Que houve uma tentativa de golpe no dia 8 de janeiro, parece fora de questão. O roteiro para a ação golpista – e, portanto, criminosa – é claro como água de bica: os “patriotas” invadiriam a Praça dos Três Poderes, detonariam tudo e clamariam pela “intervenção militar constitucional”. No melhor cenário (para os golpistas), os comandantes mandariam tirar seus homens dos quartéis, tomariam de assalto (literalmente) o poder e prenderiam Lula e todo o seu governo. Bolsonaro, então, regressaria triunfalmente do seu auto-exílio na Disney, descendo ao campo de batalha para “matar os feridos”, isto é, iniciar o expurgo contra a ordem derrubada. O primeiro da lista, claro, seria Alexandre “Xandão” de Moraes. Depois dele, Luís Roberto “Boca de Veludo” Barroso e Edson “Advogado do MST” Fachin. O resto a combinar.

No “pior cenário”, os militares não dariam um golpe clássico, mas o governo – pego de calças na mão pela destruição das sedes dos três poderes – os convocaria através de uma GLO para “pôr ordem na casa”. Nesse caso, depois de ver a ordem restabelecida pelos mesmos militares a quem os golpistas pediam intervenção, Lula estaria magnificamente emparedado. Ou bem seria obrigado a renunciar, em prol de uma suposta “pacificação nacional”, ou então ficaria na Presidência como um animal empalhado, sem poder algum, sendo tutelado pelo pessoal da caserna.

Felizmente, contudo, o que ocorreu foi o “pior pior cenário” para os golpistas. Isto é: o golpe malogrou e a maioria foi em cana. O que se desenrola, agora, é a tentativa de saber até onde vai a responsabilidade de cada um pelo que sucedeu naquela fatídica data, principalmente saber como se chegou ao que ocorreu no dia 8 de janeiro.

Segundo a delação de Mauro Cid, Bolsonaro convocou os chefes das três forças para expor a minuta do golpe. O Comandante da Marinha teria pulado dentro do golpe, o Comandante do Exército teria pulado fora, e o Comandante da Aeronáutica preferiu deixar tudo como estava, pra ver como é que ficaria. A pergunta é: só isso seria suficiente para condenar Bolsonaro?

Para o ex-presidente, “eu posso discutir qualquer coisa, posso pensar qualquer coisa, mas se não botar em prática, não tem problema”. Em princípio, o raciocínio de Bolsonaro é correto. Não existe “crime de pensamento”. Ou, para usar o latim dos rábulas, cogitatio poenam nemo patitur (ninguém sofre punição pela cogitação). O dilema, portanto, passa por saber, nesse caso específico, onde terminou a cogitação e onde teria se iniciado a execução do delito. Para respondê-lo, vejamos o que diz o artigo 359-M, do Código Penal Brasileiro:

“Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.

Pelo que dispõe o Código Penal, o tipo se consuma pela própria tentativa. Ao contrário, por exemplo, do homicídio (que só se consuma com a morte; quando ela não ocorre, o que há é tentativa), aqui o mero fato de tentar já implica a consumação do delito. Se o golpe de fato ocorrer, haverá o que os penalistas costumam chamar de mero “exaurimento” da conduta.

Pois bem. Tomando como verdadeiras as palavras de Mauro Cid, pode-se dizer que a idéia de dar um golpe de Estado já haveria passado a essa altura (fase da cogitação). Também se pode dar por superados os atos preparatórios, pois suporte jurídico já fora organizado (a tal minuta do golpe) e até mesmo os comandantes das Forças Armadas (que seriam responsáveis pela implementação do golpe) foram convocados ao Alvorada (fase da preparação).

Nesse cenário, ressalvando-se – por hábito e por dever de ofício – as palavras de Mauro Cid, já estaríamos na fase de execução do delito. Uma vez que o tipo penal descreve como ação simplesmente “tentar depor”, o fato de o Presidente da República expor seus planos golpistas aos chefes dos comandos militares, não haveria dúvida de que a tentativa – e, portanto, o crime em si – teria ocorrido. O fim a que o delito se destinava, isto é, o golpe propriamente dito, só não teria ocorrido por “circunstâncias alheias à vontade do agente” (CPB, art. 14, inc. II).

A ser verdadeiro o relato, pois, Bolsonaro já pode ir encomendando o pijama da Papuda. É necessário, contudo, colocar as barbas de molho. A verdade é que ninguém conhece ainda a delação de Mauro Cid, eis que ela permanece em sigilo, muito menos se sabe o tenente-coronel terá como corroborar suas afirmações com provas outras além da sua própria palavra.

Seja como for, o importante é que se esclareça de uma vez por todas essa história. Caso, ao final do processo, fique comprovado que Bolsonaro e seus generais estiveram de fato envolvidos numa tentativa de golpe de Estado, que a espada da Justiça caia sobre as suas cabeças com todo o rigor que dela se pode exigir. Não estamos mais em 1964. Não estamos mais em 1979.

Anistia?

Nunca mais.

Esta entrada foi publicada em Recordar é viver e marcada com a tag , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.