Estamos em Copa do Mundo.
Nem parece, eu sei. Mas ela começou oficialmente ontem, embora as peladas que tenham ocorrido no domingo e nesta segunda-feira mal possam se qualificar como jogos profissionais do tradicional esporte bretão.
Obviamente, a questão esportiva não é a principal razão para questionar a realização da Copa no pequeno emirado encravado no meio do Golfo Pérsico. Houve, claro, muita reclamação com a mudança da data, dos costumeiros meses de junho e julho, para os meses de novembro e dezembro. A alteração, contudo, é plenamente justificável, dada a impossibilidade física de praticar-se futebol sob uma Lua de 50 graus, como seria o caso se a Copa se realizasse no julho desértico do Oriente Médio.
Nesse particular, alega-se que os principais campeonatos do mundo (leia-se: os campeonatos europeus) teriam de ser suspensos para que a grande festa do futebol mundial tivesse lugar. Paciência. Até 2022, os sul-americanos sempre tiveram de adaptar os seus próprios calendários (quase sempre coincidentes com o gregoriano) às vicissitudes do calendário europeu.
Agora, ocorre o inverso, e se há grita dos clubes europeus, os motivos são exclusivamente financeiros, não por que haveria algum prejuízo futebolístico à competição. Aliás, muito ao contrário, pois se há um efeito positivo dessa mudança no calendário é justamente impedir que as maiores estrelas do futebol cheguem à Copa em fim de temporada, com articulações e musculaturas estouradas pela extenuante temporada de jogos do calendário regular. Sob esse aspecto, seria de se esperar até uma certa melhora na qualidade técnica dos jogos, embora os atuais escretes nacionais – salvo as exceções de praxe – não recomendem grandes expectativas.
O que, então, torna a Copa do Catar tão assombrosamente impopular na mídia em geral?
Em primeiro lugar, deve-se destacar que o “produto” Copa do Mundo vem sendo aviltado já há algum tempo pela própria Fifa. E não só pela questão comercial, que ultrapassou a questão esportiva já lá se vão umas boas três décadas. O problema é que a escolha das sedes virou um verdadeiro festival de corrupção da toda-poderosa dona do circo mundial do futebol. Depois de vários escândalos, foi confirmada compra de votos para escolha da sede na Copa da Alemanha (2006) e na África do Sul (2010). As mesmas suspeitas recaem sobre as escolhas da Rússia (2018) e do próprio Catar (2022). E, caso você esteja se perguntando sobre uma certa copa realizada em 2014, não é preciso fazer muita conta para suspeitar do que aconteceu, a despeito de nada ter sido comprovado até o momento.
Em segundo lugar, no entanto, a escolha do Catar traz constrangimentos de toda ordem para um mundo em que os conceitos de ESG (Environmental, social, and corporate governance) tornam-se cada mais comuns. Deixe-se de lado, por exemplo, a impossibilidade de tomar bebidas alcoólicas no país, mesmo ao redor dos estádios (dentro pode). Mas o que dizer de fazer o evento em um lugar onde a homossexualidade e o sexo fora do casamento são considerados crimes? Em que mulheres adúlteras são punidas com 100 chibatadas e vivem literalmente sob tutela masculina? Ou de um país em que, para construírem-se os estádios que receberão os jogos, morreram mais de 6 mil trabalhadores, sob graves acusações de trabalho escravo?
É certo que não é a primeira vez em que a Fifa fecha os olhos para violações graves aos direitos humanos em sedes da Copa. O exemplo da Argentina em 1978 está aí, à vista de todos, naquela que foi a mais sanguinária ditadura sul-americana e cujos comandantes, para glória do Judiciário do seu país, foram condenados à prisão pelas atrocidades cometidas (sobre o caso, assistam ao filmaço Argentina, 1985, disponível na Amazon).
Mesmo assim, o mundo do século XXI não é o mesmo do quartel final do século XX, no qual coisas básicas como os direitos humanos poderiam ser solenemente ignoradas por razões de business as usual. Há algo de maior em um evento dessa magnitude e é papel tanto da imprensa quanto dos torcedores exigir que haja um mínimo de dignidade na sua realização. Afinal de contas, a Copa do Mundo deveria ser uma celebração esportiva, não um caça-níqueis ambulante que parasita um país a cada quatro anos.
A verdade – é triste dizer – é que toda a magia que encerrava a realização de uma Copa do Mundo parece, cada vez mais, apenas uma lembrança fugidia do passado. Como a foto empoeirada e em preto e branco do moleque jogando bola na calçada, ela apenas remete à memória de um tempo que não volta mais. Um tempo em que sim, éramos infelizes, mas no qual pelo menos não éramos conscientes da nossa própria infelicidade…