O mundo político foi sacudido nessa semana pela declaração pública do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, de que é gay. Como os rumores sobre a sua sexualidade já corriam à boa pequena pelo submundo do Zap profundo, Leite achou melhor sair de vez do armário e assumir a sua homossexualidade perante todo mundo. Numa só tacada, Leite se tornou um símbolo da resistência contra a homofobia, aumentou o seu cacife numa eventual futura disputa presidencial e – provavelmente sem querer – ajudou a iluminar ainda mais a hipocrisia e a pobreza de espírito no debate público dos dias de hoje.
Como pré-candidato à presidência da República pelo PSDB, Leite não poderia ter tomado melhor atitude. Se continuasse a guardar para si essa condição, não é preciso ser nenhum gênio para imaginar que as redes insociáveis bombariam numa eventual disputa eleitoral com insinuações de todo o gênero sobre os tipos de relação sexual que o atual governador do Rio Grande do Sul mantém. Liberando-se do ultrajante silêncio a que muitos, pessoas públicas ou não, condenam-se por vergonha ou por “conveniência”, Eduardo Leite deixa de estar exposto à chantagem pública e a potenciais dossiês sobre a sua vida íntima, numa disputa que todos sabemos ser a mais encarniçada de todo o país.
Evidentemente, esse tipo de revelação não vem sem algum tipo de desgaste. À direita, Leite foi criticado por supostamente querer transformar uma questão íntima numa questão político-eleitoral. À esquerda, o governador foi cobrado pelo apoio dado na eleição de 2018 a Jair Bolsonaro, político com fama de homofóbico.
O saldo, no entanto, é amplamente positivo, não só por ter atirado no que viu – ele mesmo, compreensivelmente, revelou-se “aliviado” por ter tornado pública sua condição de homossexual -, mas também por ter acertado onde não viu. Ao se assumir como gay, Leite trouxe à baila uma discussão que de há muito deveria estar na pauta do dia do debate público do país: a hipocrisia descarada de determinados setores do espectro político ao tratarem da vida sexual alheia.
Há algumas semanas, por exemplo, foi noticiado que Jorge Antônio Batalino Riguette foi condenado a quase 13 anos de cadeia por ser um dos maiores distribuidores de pornografia infantil na Internet. Militar da reserva, com 67 anos de idade, Jorge Riguette era o protótipo do “cidadão de bem”: conservador, honesto e defensor dos “valores da família e da propriedade”.
Mas quem vem a ser o dito cujo?
Na campanha de 2018, Jorge Riguette transformou-se em um dos maiores difusores nas redes sociais do insultante “Kit Gay”, uma das fake news preferidas do Zap bolsonarista para desancar Fernando Haddad, então candidato do PT à presidência. A acusação era de que Haddad, enquanto Ministro da Educação, teria mandado distribuir kits nas escolas “orientando” as crianças a “serem homossexuais”. Na verdade, o “kit” em questão se referia a um projeto chamado “Escola sem Homofobia”, destinado a combater o preconceito contra LGBTs. Produzido por ONGs, o tal “Kit” nunca chegou a ser verdadeiramente distribuído, mas serviu como uma luva – ao lado da infame “mamadeira de piroca” – para transformar o candidato petista numa espécie de encarnação do anti-Cristo para a direita mais hidrófoba.
O caso desse militar da reserva espelha bem um fenômeno que sempre existiu e que só vem se agravando nos últimos tempos. Trata-se daquilo que a psicologia costuma designar como projeção.
A projeção, como se sabe, constitui um dos mais primitivos mecanismos de defesa elaborados pela mente humana. Ao invés de assumir para si os ônus de determinada conduta, é mais fácil para o indivíduo literalmente jogar a culpa no outro (ou “projetá-la”, para ficarmos no jargão psicanalítico). Culpas ou desejos reprimidos são transferidos da própria psiqué para o ambiente externo, normalmente canalizando-se esses sentimentos em pessoas específicas ou mesmo em coletividades (como a “esquerda” ou a “comunidade gay”, por exemplo).
Embora o fenômeno seja estudado pela psicologia, não se trata de algo desconhecido do público em geral. Pelo contrário. Mesmo pessoas com pouca vivência conseguem identificar com clareza quando uma pessoa está “projetando” seus sentimentos internos. Os exemplos são vários. Se um sujeito ataca os homossexuais direto, pode ir atrás; o cidadão em questão é gay. Se o sujeito se diz “imbrochável” ou costuma se gabar aos quatro ventos sobre sua própria virilidade, pode ir atrás; o cidadão no caso é impotente. Se o sujeito vocifera contra a corrupção e adora se jactar da própria honestidade, pode ir atrás; temos aí um corrupto de marca maior.
É certo que a hipocrisia sempre foi um fenômeno associado à política desde que o mundo é mundo. Mesmo assim, perde-se um pouco da humanidade quando se permite que questões íntimas, como a sexualidade alheia, possam permear o debate público em um misto de ignorância e preconceito, valendo-se, na maioria dos casos, da baixa escolaridade e percuciência do eleitorado.
Melhor seria, para o Brasil e para o mundo, se as pessoas passassem a se preocupar menos com a vida alheia e mais com questões concretas do quotidiano. Quem sabe assim, despindo-nos de qualquer carga de preconceito, seria possível realmente construir uma sociedade justa e solidária. A declaração de Eduardo Leite representa um pequeno, mas importante, tijolo nessa direção. Que outros mais sigam o seu exemplo.