Se há uma coisa que eu particularmente sempre quis evitar foi que este espaço se tornasse uma espécie de obituário; um espaço para elegia de grandes figuras que partiram dessa para uma melhor. A passagem do – na opinião deste que vos escreve – maior ator do século XX há duas semanas e o adeus temporão do maior craque argentino de todos os tempos, no entanto, obrigam-me a quebrar a regra para prestar a justa homenagem que ambos merecem.
Mas o que dizer de Maradona?
Fora os textos obrigatórios escritos pela imprensa esportiva e aquelas retrospectivas elaboradas pela grande mídia em geral, não há muito mais a acrescentar. Maradona era exatamente aquilo que transparecia, ao vivo ou na televisão: a pura emoção em forma de jogador.
Como atleta, Maradona era uma improbabilidade. Do “alto” dos seus 1,65m, o argentino era demasiadamente baixo para competir com atletas mais altos e mais fortes que já surgiam na geração pós-Pelé, do meio para o final dos aos 70. O Rei não era particularmente alto (tinha 1,73m), mas sua compleição física era muito mais bem distribuída em um corpo proporcionalmente esculpido para o futebol. Maradona, contudo, era o contrário. Com alegados 68kg (que muitas vezes ultrapassavam os 70kg), Dom Diego ostentava uma figura atarracada e roliça, gordinho mesmo. Ninguém diria que dali seria possível extrair uma explosão igual àquela que o levou a driblar meio time da Inglaterra e fazer o segundo gol mais bonito de todas as Copas, nas quartas de 1986 (sim, o primeiro é o quarto do Brasil na final contra a Itália em 1970).
Como figura humana, Dieguito era um polemista por natureza. Orgulhoso do sangue argentino que carregava nas veias, Maradona brigou com tudo e com todos: dirigentes, técnicos, jogadores, ex-jogadores e até com as próprias filhas, no final da vida. Não era do tipo que passava pano, nem gostava de fazer média com quer que fosse. Tivesse outro temperamento, possivelmente não teria levado ganchos tão severos da Fifa quando seus anti-dopings deram positivo em mais de uma oportunidade (sim, os “julgamentos” da toda-poderosa entidade do futebol são recheados de política).
Os argentinos nunca irão concordar, é fato, mas Maradona não foi maior que Pelé. Até porque, convenhamos, não há, nunca houve e provavelmente nunca haverá ninguém como Pelé. De todo modo, pode-se dizer que Dom Diego foi aquele que chegou mais próximo da genialidade do nosso querido Edson Arantes do Nascimento. Tostão, que jogou contra e ao lado do Rei, diz pra quem quiser que ouvir que Maradona foi o maior showman que ele já viu em campo. E se o Tostão que é o Tostão diz isso, quem somos nós pra discordar?
Se no campo da bola a discussão nem sequer se põe, no campo midiático a disputa rende uma boa discussão. Pelé reinou, de fato, durante toda a sua carreira e até ser coroado o “Atleta do Século” pela revista L’Equipe em 1981. O Rei, contudo, tornou-se mito numa outra era, em que a TV ainda engatinhava e a máquina de propaganda da grande mídia não tinha nem a penetração nem o poder de persuasão que passaram a ter a partir dos anos 80.
Nesse panorama, Maradona veio bem a calhar para todo mundo. Não só porque o argentino era um gênio da bola, mas porque suas polêmicas extracampo ajudavam a mantê-lo constantemente na mídia, mesmo quando não havia futebol envolvido. De certa forma, Maradona esteve para o futebol como Michael Jackson esteve para a música pop nos anos 80. Ambos foram os maiores popstars das suas categorias durante aquela mágica década.
Obviamente, tamanha exposição teve um custo, ainda mais para alguém com pouco sentimento de reserva como era o caso de Maradona. Assim como Michael Jackson se precipitou em extravagâncias e em comportamentos cada vez mais excêntricos, Dom Diego se afundou nas drogas e dali nunca mais voltou. Seu envolvimento com a Camorra, no período em que jogou no Napoli, é largamente documentado. Purgatório da beleza e do caos da Itália, Nápoles foi a um só tempo o paraíso e a perdição do argentino. Para o bem e para o mal, Maradona nunca mais seria o mesmo depois de ter passado por lá.
Tudo isso, claro, perde importância quando se pensa na figura humana. Complexo, controverso, controvertido, contraditório, mas demasiadamente apaixonante, Maradona parecia encerrar em si – tal qual um poema de Drummond – todos os sonhos do mundo. A maior parte deles se perdeu pelo caminho, é verdade. Mas o sonho do menino pobre, nascido no subúrbio de Buenos Aires, baixinho, atarracado, sem nenhuma grande qualidade física e que só jogava bola com uma das pernas, esse – esse, sim – tornou-se realidade.
Vá em paz, Dieguito. Sua nação – e todos aqueles que amam o futebol – choram junto com ela.