Depois de uma longa e tenebrosa quarentena, eis que o Brasil volta novamente às urnas para eleger seus alcaides e edis.
Como sói acontecer nessas ocasiões, a imensa maioria da grande imprensa derrama-se em análise sobre os impactos dos resultados na política nacional, como se uma coisa implicasse necessariamente a outra. Logo vieram as indefectíveis “listas” de vitoriosos e derrotados na eleição, quase todas tendo o presidente Jair Bolsonaro na segunda coluna.
Evidentemente, os exercícios de futurologia são um expediente natural, especialmente para quem vive de produzir notinhas inúteis numa imprensa que opera cada vez mais em um mundo paralelo. Ocorre, no entanto, que o buraco da análise política é mais embaixo e nunca, jamais, está sujeito a análises apressadas escritas ainda no calor dos acontecimentos.
Que Jair Bolsonaro não “ganhou” no último domingo está muito claro. Os candidatos patrocinados por ele em seu excêntrico “horário-live eleitoral gratuito” soçobraram em sua maioria. Casos emblemáticos, como sua ex-assessora Wal do Açaí, tiveram desempenho pífio nas urnas. Nenhum maior, contudo, que Celso Russomano em São Paulo, que saiu da briga pela liderança para amargar uma humilhante quarta colocação no primeiro turno, naquela que era, em dúvida, a eleição mais importante da rodada.
No entanto, “não ganhar” não significa necessariamente “perder”, é bem outra coisa. Se Bolsonaro tivesse arrastado consigo todos os seus candidatos para a vitória, o resultado projetaria um verdadeiro passeio em 2022. Além do fato de capitalizar a importância de seu apoio político, o atual presidente contaria com os favores de candidatos que teriam sido eleitos com sua ajuda nas principais capitais do país. Tendo os alcaides de Rio, São Paulo e Belo Horizonte (pra citar só as três mais importantes) como cabos eleitorais, não seria difícil prenunciar uma tranquila reeleição daqui a dois anos.
Com o resultado que as urnas acabaram por consagrar, nada disso acontece. Mesmo assim, é de extrema ligeireza querer entender que essa “derrota” significa uma alteração política significativa para 2022. Na melhor das hipóteses, tudo continua como está, ou seja, com Bolsonaro transitando livremente na faixa da direita e com a faixa de centro ainda estupidamente interditada, quer pela falta de opções viáveis, quer pelo constante bate-cabeça das lideranças responsáveis por construi-la. É da faixa da esquerda, entretanto, que vem a grande novidade dessas eleições.
Com parcos 17 segundos de propaganda eleitoral e montado numa estrutura partidária nanica, Guilherme Boulos atropelou candidatos muito mais experientes na reta final e conseguiu descolar uma vaguinha no segundo turno do pleito na capital paulista. Numa cidade marcada por eternos embates entre PT e PSDB, o partido da estrela vermelha levou uma sova histórica, com seu candidato ficando atrás até do infame Arthur “Mamãe Falei”.
Preso na mitologia do “golpe” e quase tendo como pauta única o “Lula Livre”, o PT parece ter perdido a preferência do eleitorado progressista. Além de não ter eleito nenhum prefeito de capital, o PT viu seu contigente de prefeitos ser reduzido a menos de duas centenas. PSB, PCdoB, PDT e PSOL acabaram engordando suas prefeituras, aumentando suas capilaridades, a ponto de quase rivalizar com o partido que se pretendia hegemônico na esquerda brasileira.
Isso, contudo, tampouco significa que a esquerda tenha “ganhado” o último pleito municipal. Longe disso. Se é possível determinar um “vencedor” das últimas eleições, este vencedor é o Centrão. PP, PSD, MDB e DEM – representantes da direita e da centro-direita – levaram a maioria das prefeituras por todo o país e aumentaram ainda mais seu poder de barganha frente ao Executivo federal, a ponto até de se cogitar uma reforma eleitoral que distribua ministérios aos outrora renegados expoentes da “velha política”. O eleitorado progressista ganhou um respiro, é verdade, mas estamos longe de uma inflexão que oriente uma mudança de ares na política nacional.
Somadas umas e outras, a única conclusão a que se pode chegar é que o jogo de 2022 continua exatamente como estava até o último sábado: completamente em aberto. Dois anos em política são uma eternidade, ainda mais nestes tempos tão acelerados que estamos vivendo. O governo pode degringolar de vez ano que vem, cedendo à tentação populista, estourando o teto de gastos e trazendo de volta uma velha conhecida nossa: a inflação. Ou pode, ainda, conseguir criar de alguma forma uma renda básica que rivalize com o Bolsa-Família, sem afetar as contas públicas e garantindo alguma recuperação econômica no próximo biênio. A depender do que aconteça, tudo pode acontecer (inclusive nada).
Para os mais crentes em análise superficiais, ou os que estiverem apressados em ler o futuro nas nuvens, a pergunta que se faz é a seguinte:
Quem, em 2016, apostaria que, em 2018, Jair Bolsonaro seria eleito presidente do Brasil?