A lenda é antiga, mas sempre convém resgatá-la.
Há mais ou menos uns 15 séculos, o rei hindu Shiran encontra-se entediado com o mundo à sua volta. Como nada encontrasse que lhe pudesse tirar do marasmo existencial, decidiu promover uma espécie de gincana no reino: ao súdito que lhe concebesse o passatempo mais inteligente e divertido, ele lhe agraciaria com a satisfação de qualquer desejo.
Muitos foram os que tentaram. Mas somente um deles se sobressaiu no final das contas: Seta, um pacato agricultor do interior do país. O jogo por ele concebido era, em sua concepção, relativamente simples: um quadrado dividido nas suas linhas horizontal e vertical em oito, de modo que perfizesse uma divisão exata de 64 casas. Para preenchê-las, Seta desenvolveu 16 peças, espalhadas por seis categorias, cada uma delas com um modo peculiar de movimentação no tabuleiro. A esse engenhoso arranjo lúdico Seta atribuiu o nome de Xadrez.
O rei hindu ficou maravilhado. O grau de variações possíveis nesse jogo era algo impressionante. As diferentes possibilidades de desenvolvimento de uma partida eram tão assombrosas que era virtualmente impossível que alguém se entediasse diante dele, por mais vezes que o jogasse. Como prometido, o rei Shiran mandou trazer Seta ao seu palácio para recompensá-lo:
“Meu caro Seta, pela invenção deste maravilhoso jogo, quero recompensá-lo apropriadamente. Diga-me o que queres que eu satisfarei o seu pedido”.
Seta, de início, mostrou-se reticente, como se receasse uma justa reprovação ao pronunciar aquilo que desejava. Shiran não se fez de rogado:
“Deixe de timidez, meu rapaz. Sou poderoso e rico o suficiente para atender a qualquer pedido seu. Basta me dizer que ele será satisfeito”.
Seta olhou para um lado, olhou para o outro, até que finalmente olhou para o soberano e disse:
“Muito bem, meu rei. Sendo assim, quero apenas um grão de trigo para a primeira casa do tabuleiro”.
“Só isso?!?”, respondeu um estupefato Shiran.
“Não. Um grão de trigo para a primeira casa, dois grãos de trigo para a segunda casa, quatro grãos de trigo para a terceira casa, e assim sucessivamente, até atingir a 64ª casa do tabuleiro”.
Shiran, então, mandou que um de seus ajudantes fosse buscar uma saca de trigo para entregar a Seta. Seta, no entanto, recusou a prenda.
“Isso não é tudo, meu rei”.
“Pois bem. Tragam então duas sacas de trigo para entregar a esse homem”.
“Não quero duas sacas, meu senhor”, interpelou Seta. “Quero exatamente a quantidade de grãos que descrevi no meu pedido”.
Como o rei se impacientasse com a reticência do súdito em receber as sacas que lhe eram oferecidas, Seta então sugeriu que o rei mandasse seus melhores matemáticos calcularem a quantidade exata de grãos. Ele voltaria no dia seguinte para cobrar o que lhe fora oferecido.
O resto da história é conhecido. O rei Shiran descobriu que a quantidade de trigo exigida por Seta atingia a estonteante marca de 18.446.744.073.709.551.616 grãos. Traduzindo isso para uma linguagem agrícola, o “presente” oferecido pelo rei equivalia a aproximadamente 500 bilhões de toneladas de trigo, quantidade que excedia – e ainda hoje excede – em muitas vezes toda a produção anual do mundo do grão.
Que é demasiadamente fabulosa para ser tida como verdade, não resta a menor dúvida. Mas a lenda que cerca a criação do mais cerebral dos jogos já desenvolvidos pelo ser humano serve muito bem para demonstrar o poder da exponenciação. E, no contexto atual, para entender o tamanho do drama trazido pela Covid-19.
Desde quando se anunciou a chegada da pandemia no Brasil, muita gente achou por bem desacreditar o tamanho do problema. Seja por razões políticas, seja por ignorância, ou por uma mistura das duas coisas, muita gente dava de ombros para o desafio que se anunciava à nossa frente. Uma hora dizia-se que o estrago não seria tão grande assim. Outra hora argumentava-se que não havia como o vírus se espalhar na velocidade que a “mídia” dizia. O que essas pessoas não entendiam era que, mais do que uma questão biológica/epidemiológica, o problema em si era basicamente matemático.
Imaginemos, por exemplo, que a taxa de transmissão da Covid-19 seja de 1 pra 2, isto é, que um infectado transmita o vírus para outras duas pessoas (os cálculos indicam que, no Brasil, esta taxa esteja entre 3 e 4%, mas deixa pra lá). Se uma pessoa infecta outras duas, essas outras duas infectarão outras quatro; que por sua vez infectarão outras oito; que por sua vez infectarão outras dezesseis…
Parece familiar?
Pois é. O mesmo raciocínio desenvolvido no caso da lendária origem do xadrez aplica-se, de igual modo e com o mesmo rigor, à transmissão comunitária da Covid-19. Quem refuta o grau de destruição que essa pandemia pode causar não está (somente) contrariando a “Ciência”. Está renegando a própria matemática.
Os números estão aí pra quem quiser ver. Descontando-se a imensa subnotificação – os especialistas estimam que o número real de infectados seja entre sete e dez vezes maior que o real, porque o Brasil realiza um número absolutamente ridículo de testes -, pode-se observar que, no dia 17 de março, o país reportava 350 casos e apenas uma morte. No dia 17 de abril, apenas um mês depois, eram 33.682 casos e impressionantes 2.141 mortes. Faltando ainda quatro dias para completarmos o segundo mês desde quando os falecimentos começaram, o Brasil já tem seis vezes mais do que há um mês: quase 190 mil casos e mais de 13 mil mortos.
E isso não é o pior. Ainda não se sabe ao certo a real taxa de letalidade do vírus, mas estudos indicam que seja algo entre 0,7% e 1,2%. Admitindo-se o percentual mais otimista (0,7%), se efetivamente a pandemia só vai diminuir quando 70% da população for infectada (embora não exista qualquer estudo que indique que a tal “imunidade de rebanho” seja alcançada nesse patamar), isso significa que morrerão exclusivamente de Covid-19 aproximadamente 1 milhão de brasileiros – 0,7% de 150 milhões (70% de 220 milhões). Isso, destaque-se, serão só as pessoas que morreriam naturalmente dessa doença, mesmo que contassem com todos os recursos médicos possíveis (UTI, ventilador, remédios, etc.) Em um cenário de colapso do sistema público de saúde, esse número seria muitas vezes maior.
O que está em jogo, portanto, não é apenas uma luta contra uma doença qualquer. É praticamente uma luta pela nossa sobrevivência. A quantidade de gente que perderá a vida – e isso inclui conhecidos, amigos e familiares – depende exclusivamente da nossa capacidade de entender o tamanho do desafio que se apresenta diante de nós. É isso ou, então, teremos a maior tragédia humanitária que o Brasil já experimentou em todos os tempos.
Por isso mesmo, stay home; stay safe.