Ana Clarissa era uma menina espoletada. Desde pequena, transformou-se em líder natural de seu grupo. Parte porque seu charme exercia uma atração irresistível sobre os liderados, como um pólo elétrico atraindo seu oposto. Parte porque, à falta de quem se dispusesse a encarar o entediante cotidiano burocrático das escolas infantis, Ana Clarissa sempre estava disposta a fazer qualquer coisa, desde que ela fosse a estrela da companhia. Mas se antes a liderança era apontada na base do dedazo da coordenadora, agora em tempos democráticos o cargo exigia algo mais de seu aspirante: submeter-se ao escrutínio secreto de seus pares.
Não que isso intimidasse, Ana Clarissa. Muito pelo contrário. Ao saber da decisão da escola pela alternativa democrática, não se fez de rogada. Era como se já soubesse de antemão qual seria o resultado. Nem mesmo o sigilo inviolável da urna punha-lhe medo. Ela estava tão segura da vitória que não lhe passava pela cabeça a hipótese de os demais alunos, acobertados pelo manto do segredo, pudessem lhe trair no escurinho da cabine. A eleição eram favas contadas.
O tempo deu razão a Ana Clarissa. Com uma esmagadora votação, a endiabrada elegeu-se líder da sala. Mas nem tudo eram flores. Ao melhor estilo Constituição de 1946, o vice-líder era eleito numa votação em separado. Uma vez que não havia chapa única para os dois cargos, nada impedia que, em tese, um desafeto fosse alçado à condição de substituto do líder. Foi exatamente o que aconteceu.
Para o segundo posto da sala, a turma elegeu Roberval. Extrovertido, brincalhão e avesso à autoridade em geral, Roberval era o oposto de Ana Clarissa, uma menina restrita aos seus, séria e ciosa de suas prerrogativas de líder. Se pudesse, Ana Clarissa enxotaria Roberval na primeira chamada do dia. Mas o respeito aos princípios democráticos impunha o seu recolhimento. Até aí, tudo bem.
Problema foi quando Ana Clarissa teve de viajar. Filha de empresários, a menina teve de atravessar o Atlântico por conta de uma viagem de negócios dos pais. Como a viagem era curta, os pais preferiram não recorrer nem aos tios nem à avós. Aproveitariam a obrigação de ausência e transformariam um limão (deixar a filha sozinha no Brasil) numa limonada (uma viagem ao exterior em família). Nem tudo, entretanto, correu como planejado.
No segundo dia de uma viagem de cinco, seu pai começou a sentir um mal estar na região abdominal. Vômitos, febres e falta de apetite se somavam a um quadro geral de dores naquela região que fica entre o umbigo e a bacia. Levado ao hospital, o diagnóstico foi certeiro: seu pai estava com apendicite.
Operado de emergência, o pai de Ana Clarissa ficou internado no hospital. Nada que preocupasse tanto. Afinal, quando se opera um apêndice supurado, não se libera o paciente senão antes de ver seus exames sanguíneos retornarem à normalidade. Ansiosa, Ana Clarissa perguntava a toda a hora à mãe:
“Quando é que o papai vai ter alta, mãe?”
“Não sei, minha filha”, respondeu uma resignada figura materna.
“Mas quando é que a gente vai voltar pra casa?”, insistiu Ana Clarissa.
“Já disse que não sei, minha filha”, replicou a mãe, para logo então emendar: “Por que é que você está tão ansiosa?”
“Eu preciso voltar pra escola”, respondeu a filha.
“Não se preocupe. Eu falo com a coordenadora sobre o que aconteceu e depois você repõe as aulas. Qualquer coisa, você faz segunda chamada das provas que tiver”, explicou a mãe.
“Eu sei, mãe. Mas não é isso que tá me deixando preocupada…”, disse Ana Clarissa.
“E é o quê, então?!?”, perguntou uma intrigada mãe.
“É que semana que vem vai ter a cerimônia de posse dos líderes de sala. E eu não vou estar lá…”
To be continued…
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