Emoções contraditórias

Relações afetivas são sempre delicadas. Se entre amigos a coisa se resolve numa roda de bar (quando dá certo) ou numa mão de braço (quando dá errado), com a família o buraco é mais embaixo. Na maior parte dos casos, não dá simplesmente pra extirpar a pessoa do seu convívio, até porque você vai ser forçado a encontrar com ela nas ocasiões festivas dos restantes familiares. Para além disso, sempre há aquele olhar de esguelha para quem corta relações com os mais próximos. Por mais que se diga “Não tô nem aí para o que os outros pensam”, no fundo a maioria encontra na suposta inevitabilidade corte o pretexto para manter as aparências e evitar o rompimento definitivo. Foi o que aconteceu com Maria Tereza.

Maria Tereza – ou Têca, para os mais íntimos – era uma menina simpática e divertida. Dava-se com todo mundo, mas seu avô não era exatamente a pessoa mais amável do Universo. Grosso como papel de enrolar prego, o velho parecia que tinha uma especial predileção por atormentá-la com suas tiradas ferinas. Numa delas, a mágoa foi tanta que Têca simplesmente deixou de frequentar a casa dos avós. Ainda que a mãe insistisse, não havia jeito; o rasgo de sinceridade do avô calara fundo na sua alma. A raiva tinha sido tanta que ela descontara parte da raiva na comida, ganhando alguns quilinhos.

Uns bons dois anos e muita saliva da irmã apaziguadora depois, Têca enfim consentiu em voltar à casa dos avós. Acompanha da mãe e da irmã, a neta entrou ressabiada na casa, como alguém que teme entrar no consultório de vacinação lembrando da dor da vacina. Afinal, tanto tempo depois, ela não fazia a mais remota idéia de como o avô digerira a sua ausência prolongada. Será que a ficha caíra, e ele a receberia de braços abertos? Ou será que a mágoa tinha sido recíproca, e ela seria recebida a patadas?

Respiração presa, peito estufado, Têca chega à casa. Deixa estrategicamente a mãe e a irmã entrarem primeiro. Feitos os cumprimentos de estilo, Teca passa a porta e entra na sala. Sentado numa poltrona, o avô olha para a porta e reconhece a neta. Súbito, uma exclamação:

“TÊCA!!”, berrou o avô.

Sim, parecia que a primeira opção se confirmaria. O avô tinha se arrependido, sentira muito a sua falta e mal podia esperar para abraçá-la novamente. Têca não se conteve. Abriu os braços e exclamou de volta:

“VÔ!!!”

Foi quando o avô complementou:

“Têca…Cê tá uma baleia!!!”

E Têca nunca mais voltou à casa dos avós…

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