Vinte dias de governo e já tem gente querendo ver o vice-presidente pelas costas.
Embora ninguém conteste o flagelo deixado por Dilma Rousseff, deve-se reconhecer que as medidas tomadas por Michel Temer até o momento não foram exatamente auspiciosas. Entre murmúrios de aliados insatisfeitos, indecisão entre senadores responsáveis pelo julgamento do impeachment e, principalmente, pressão da Operação Lava-Jato, uma idéia voltou a agitar os bastidores de Brasília: a convocação de eleições gerais para decidir os rumos do país.
Que a eleição de um novo governo seria a melhor alternativa para a crise política atual, não há a menor dúvida. O respaldo da maioria popular funcionaria como bálsamo a um governo que precisa desesperadamente de legitimidade para empurrar a agenda de cortes e expurgos necessária a devolver as contas fiscais ao equilíbrio. Nem Dilma – acusada de estelionato eleitoral -, nem Temer – eleito por tabela na mesma chapa da presidente impedida -, dispõem de tamanha legitimidade. Nesse ponto, a melhor leitura da crise produzida até agora, por incrível que pareça, foi a de Aécio Neves, o primeiro a falar na necessidade de um novo pleito para respaldar um governo pautado em reformas antipáticas ao grosso da população.
Se todo mundo concorda com a solução, pouca gente está de acordo com o método. De acordo com a Constituição, novas eleições presidenciais só seriam possíveis em três casos: 1) impeachment sucessivo de Dilma e Temer; 2) renúncia de ambos ao posto; e 3) cassação da chapa pelo TSE.
No primeiro caso, apenas metade do serviço está encaminhado. Dilma já foi afastada, mas ainda falta seu julgamento definitivo pelo Supremo. Se impedir a ex-presidente parece fácil, fazer o mesmo com Michel Temer parece muito mais difícil. Além de estar montado em cima do maior partido do Congresso (o PMDB), aquela gigantesca massa disforme autodenominada de “blocão” dificilmente embarcaria nessa aventura, ainda mais quando se considera que Eduardo Cunha, mesmo afastado da presidência da Câmara, continua dando as cartas por lá.
No segundo caso, a probabilidade de alcançar esse resultado é zero. Em primeiro lugar, porque Temer não mostra a menor inclinação para a renúncia. Em segundo lugar, porque Dilma já anunciou publicamente que não vai renunciar para não dar o “pretexto legitimador” do impeachment. Sem renúncia, sem eleições.
Restaria, por fim, a via do TSE. O problema, contudo, é que o processo sequer teve seu julgamento iniciado. Pra piorar, o afastamento de ambos só ocorreria após o chamado “trânsito em julgado” da decisão, isto é, quando não coubesse mais recursos. Ninguém minimamente familiarizado com o Judiciário brasileiro pode afirmar com seriedade que tal decisão se torne definitiva no prazo exigido pelo tamanho da crise que atravessamos.
Como desgraça pouca é bobagem, qualquer dos três cenários acima teria necessariamente de ocorrer antes de 2017. Se o duplo impeachment, a renúncia coletiva ou a cassação da chapa pela Justiça Eleitoral ocorrerem depois da virada da folha do calendário, o sufrágio direto e universal vai pro espaço; a eleição de um presidente tampão competiria ao Congresso Nacional, o mesmo Congresso que elegeu Eduardo Cunha e Renan Calheiros como presidentes da Câmara e do Senado. É quase desnecessário dizer que ninguém aceitaria tal solução.
Diante de tudo isso, alguns políticos e até “juristas” (e bota aspas nisso) têm sugerido a convocação de novas eleições através de uma emenda constitucional. O plano é tão simples quanto engenhoso: Dilma seria inocentada pelo Senado, Temer cairia em desgraça e, em seguida, ela proporia uma alteração da Constituição para que seu mandato fosse encurtado.
Embora a alternativa seja sedutora do ponto de vista político, porque encurta o chamamento do povo a decidir seu próprio destino – que hoje só está programada para 2018 -, do ponto de vista jurídico a proposta não pára em pé.
De cara, uma proposição de encurtamento do mandato eleitoral esbarraria na cláusula pétrea da Constituição que estabelece o princípio democrático (art. 60, §4º, inc. I). Uma vez estabelecida a periodicidade do voto, o próprio período no qual o sufrágio deve ser exercido também está protegido pelo texto constitucional. É dizer: ao se eleger um representante por determinado tempo, sua retirada através do voto somente pode ocorrer após o cumprimento integral do mandato. É uma forma, por assim dizer, de proteger o povo de si mesmo, ao garantir que eleito cumprirá o mandato em sua totalidade, sem se preocupar com a reversão da maioria que o elegeu.
Para além disso, seria difícil compatibilizar essa proposta com uma interpretação sistemática da Constituição. Se de fato fosse possível encurtar por meio de uma emenda o mandato presidencial, por que o texto constitucional preveria o impeachment? Para aprovar-se uma alteração da Constituição, “bastam” 3/5 da Câmara e do Senado. No caso do impeachment, necessita-se de 2/3 de ambas as casas. No limite, seria possível “impichar” um presidente por 3/5 do Congresso, atalhando a tortuosa via do impeachment e tornando-o na prática desnecessário.
Mas admita-se que o problema jurídico possa ser contornado. Afinal, não seria a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal fecharia os olhos para um atentado à Constituição. O STF já chancelou, por exemplo, o confisco de Fernando Collor, o decreto do “Apagão” de Fernando Henrique Cardoso e a Reforma da Previdência de Lula. Em maior ou menor grau, todas elas representaram uma violência ao texto constitucional. Não seria nada estranho, portanto, imaginar que o Supremo voltasse a deitar seus olhos complacentes a contingências políticas de ocasião. Mesmo assim, haveria inúmeras dúvidas a solucionar.
Em primeiro lugar, ninguém tem certeza se Dilma Rousseff concorda com essa proposta. Consultada, a única coisa que a presidente afastada respondeu foi perguntar se os integrantes do Congresso topariam fazer o mesmo. Como a possibilidade de isso acontecer é nula, parece razoável entender que ela não pensa em abrir mão do que eventualmente lhe reste de mandato.
Em segundo lugar, pouca gente no PT deseja sinceramente o retorno de Dilma. Alijados do poder, os petistas agora divertem-se exercitando o papel que melhor desempenham: a oposição raivosa, contra tudo e contra todos. No íntimo, muitos de seus correligionários estão verdadeiramente aliviados por terem se livrado do fardo do governo da ex-guerrilheira. Sem querer, aqueles que lhes faziam oposição ofereceram-lhes o melhor dos mundos: bradar o discurso do “golpe”, ao mesmo tempo em que se opõem às mesmas medidas impopulares que propunham. Tudo considerado, é no mínimo duvidoso achar que os petistas irão realmente “lutar” para devolver a presidência a Dilma Rousseff.
Fora isso, a rejeição do impeachment pelo Senado e o consequente retorno de Dilma Rousseff lançariam o país em um processo de desestabilização de consequências imprevisíveis. Metade da população ficaria tentada a praticar haraquiri coletivo, enquanto a outra metade, estupefata, ficaria sem saber como a presidente afastada levaria o país adiante negociando com os “golpistas” que lhe privaram temporariamente do poder.
No meio de tudo isso, alguém em sã consciência imagina ser possível convocar novas eleições? Noves fora o fato de que não há sequer candidaturas organizadas para tanto, entre a proposta de emenda, sua aprovação, a organização da campanha e a realização de dois turnos eleitorais se passariam, na melhor das hipóteses, seis meses. Alguém acha que a economia e, por conseguinte, a população aguentariam deixar o país mais meio ano em stand by?
Ao Brasil, portanto, restaram basicamente duas opções: rezar pelo sucesso do governo Michel Temer; ou torcer para que o TSE descubra a agilidade processual que jamais foi capaz de demonstrar. Do contrário, corremos o sério risco de darmos o primeiro passo numa lenta ladeira escorregadia que nos levará a um estado de convulsão social jamais visto.
E Deus sabe onde isso vai parar…