Recordar é viver: “A ‘primavera’ árabe

Em tempos de terrorismo em alta, convém recordar um dos primeiros posts deste espaço sobre a análise do panorama internacional.

Quem sabe se não haverá algo profético no então “saudável exercício de ceticismo” do autor.

A ‘primavera’ árabe

Publicado originalmente em 22.8.11

Segunda-feira é o dia perfeito para o saudável exercício do ceticismo. Então, vamos a ele:

Com a iminente queda de Kaddhafi, o mundo foi varrido novamente como notícias sobre a “primavera” árabe. De novo, o mesmo blá-blá-blá barato de que o povo estava cansado de tanta ditadura, que quer democracia, que caiu o último bastião do autoritarismo na região, etc., etc., etc.

A referência a “primavera” é uma evidente forçação de barra. Quer-se conectar as revoluções no norte da África à “Primavera dos Povos”, seqüência de revoltas burguesas que derrubaram monarquias por toda a Europa em 1848. Tenta-se ligar dois pontos absolutamente diferentes na história, como se ela fosse um novelo de lã desenrolado pelo tempo. O buraco, contudo, é bem mais embaixo.

Para parafrasear Marx, a história, nesse aspecto, ameaça repetir-se. E, se a primeira foi não foi exatamente uma tragédia, não tenho muitas dúvidas de que a esta cabe o epíteto de farsa.

Primeiro ponto: a Primavera dos Povos não teve nada de povo. Quando muito, o povo foi massa de manobra; seja da burguesia, seja da nobreza. Não houve insurreições “populares”, realmente, mas movimentos de detonação de governos, orientados por setores descontentes da elite.

Segundo ponto: a Primavera dos Povos foi um rotundo fracasso. Embora num primeiro momento as monarquias tenham sucumbido aos levantes, o fato é que, pouco tempo depois, estavam restabelecidas em todos os países nos quais haviam sido derrubadas. Na “insurreição” mais prolongada, a República Francesa demorou quatro anos (1848-1854) para soçobrar. Isso se você considerar que Luís Bonaparte, Presidente da República, já não era então o futuro Napoleão III. Faltava-lhe apenas ostentar o título.

Terceiro ponto: não há nenhuma garantia de que, no lugar dos ditadores de plantão, serão implantados regimes democráticos. O Egito, por exemplo, saudado como berço da “primavera”, já enjaulou Mubarak. Mas democracia que é bom, até agora, nada. Os gorilas continuam a dar as cartas por lá, e não há qualquer sinal de que isso vá mudar por um bom tempo. Não há porque pensar que na Líbia ou no resto dos países árabes será diferente.

Lembro-me como se fosse ontem da queda de Mobutu Sese Seko. Ditador do Zaire (antigo Congo Belga), Mobutu mandou e desmandou no maior país africano por quase 30 anos. Doente, Mobutu foi derrubado do governo em 1997 quando estava na Suíça, tratando um câncer. Seu opositor, Desirée Laurent Kabila, foi saudado como uma “primavera” congolesa. Carregava consigo a aura de guerrilheiro e uma mística associada a Patrice Lumumba, companheiro de armas de Che Guevara, líder da independência do Congo Belga, morto provavelmente pela CIA.

Ao assumir o governo, mudou o nome do país para República Democrática do Congo. Para provar que falava sério, extinguiu os partidos políticos e proibiu manifestações populares. Convulsionou o país e terminou assassinado por um guarda-costas, em 2001.

Não há razão para crer que, agora, será diferente.

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