Sabe aquela história de que, da onde menos se espera, daí é que não vem mesmo? Pois é. Nesse caso, a velha brincadeira sobre as surpresas que a vida reserva para a gente simplesmente não cabe no exemplo.
Pois quem imaginaria que o post mais polêmico de todos os tempos do Dando a cara a tapa viesse de uma seção tão inesperada como as Dicas de Português? Afinal, aqui, mais até do que em outras seções do Blog, o intuito nunca foi polemizar, mas, sim, servir de espaço de utilidade pública. O propósito sempre foi que os visitantes pudessem refletir sobre as sugestões do Autor e tentar incrementar sua escrita, algo premente, dada a assustadora queda do nível dos textos em geral no Brasil.
No entanto, quando resolvi desancar o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a polêmica atravessou o Atlântico e provocou uma verdadeira invasão lusitana neste espaço. Embates ferozes sobre a conveniência ou não do AO90 enriqueceram este espaço e, pelo menos no meu caso, serviu para reforçar as convicções sobre a inutilidade do Acordo.
E, assim como meu caro Rui Duarte, este espaço seguia em desacordo com o AO90.
Era a opinião de então. É a opinião agora. Será a opinião depois.
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
Publicado originalmente em 23.8.12
Uma coisa que me tirou do sério e que só tende a piorar meu humor à medida que se aproxima o final do ano é o acordo ortográfico da língua portuguesa.
Como todo mundo sabe, em 2009 os representantes de Portugal, Brasil, Guiné Bissau, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste resolveram unificar a ortografia da língua de Camões. Alegava-se que a situação atual era absurda, pois a mesma palavra possuía grafias diferentes conforme o país em que se estivesse, a despeito de a língua ser supostamente una.
À primeira vista, a iniciativa é válida. Afinal, espanhol, francês e inglês possuem não só uma ortografia única como uma gramática unificada. Não à toa, são as línguas verdadeiramente universais do planeta. Mesmo sendo a língua nativa de mais de um bilhão de pessoas, dificilmente o chinês alcançará esse patamar. Na China, falam-se dezenas de dialetos, e o chinês “padrão” – o mandarim – pouco tem a ver com os demais dialetos falados por lá.
À segunda vista, a idéia é uma rematada tolice.
Em primeiro lugar, a unificação chega com 500 anos de atraso. Hispanohablantes, spoken english people e les francophones são o que são porque obedecem a um mesmo sistema de regras há mais de meio milênio. A gramática espanhola, por exemplo, foi unificada em 1492, mesma data da unificação da Espanha. Adotou-se o castellano, e, desde então, na Espanha e na América espanhola, seguem-se os padrões e regras estabelecidos à época. Aliás, é justamente por isso que o italiano não constitui uma língua universal. O italiano standard deriva do toscano. Como a Itália só foi unificada no final do século XIX, nem mesmo entre os italianos a unificação teve lugar. Em algumas partes da Itália, o toscano é somente a segunda língua do povo, não a língua materna.
No caso do português, há diferenças de linguagem tão arraizadas no inconsciente coletivo que jamais não serão mudadas por nenhum acordo deste mundo. Por exemplo: ninguém vai convencer um português a escrever “fato” ao invés de “facto”. Preguiça mental? Longe disso. “Fato” para eles é o nosso “terno”. Trocar um pelo outro simplesmente não fará sentido. Isso para não falar dos casos, digamos, “gramaticais”. Por exemplo: um brasileiro dirá “Fulando se beneficiou de um esquema de corrupção”. Já um português dirá “Fulano beneficiou de um esquema de corrupção”. Para eles, a reflexividade é ínsita ao verbo, sendo desnecessário o uso do “se”.
O acordo vai resolver esses casos? De forma alguma.
Em segundo lugar, há um problema conceitual com o acordo. Na maior parte dos casos, retira-se da língua portuguesa algumas coisas consideradas “problemas” simplesmente pela incapacidade de o país ensinar aos seus cidadãos o uso correto da língua. “Ah, ninguém acerta o uso do trema”. Pronto: retira-se o trema. “Muita gente erra acentuação”. Sumam-se com os acentos em das paroxítonas terminadas em ditongo aberto. Em resumo: ao invés de ensinar o povo a escrever corretamente o próprio idioma, retiram-se os “problemas” para torná-lo mais fácil.
Por último, em muitos casos, o acordo ortográfico, ao invés de solucionar, acaba confundindo ainda mais as coisas. As hipóteses são várias.
Há o caso, por exemplo, do fim do acento diferencial do “para” (preposição)/”pára” (verbo). Aí você vê numa notícia: “Carro para São Paulo”. É impossível saber se o sujeito está propondo mais carros para São Paulo ou se um carro parou a cidade de São Paulo.
Mas nenhum deles é pior do que a hifenização. Este, sim, era um problema aparentemente insolúvel para o ensino da língua portuguesa, simplesmente porque não há regras minimamente racionais para o seu emprego. Vem o acordo e faz o quê? Torna o sistema ainda mais confuso. Fora não ter estabelecido normas práticas para o uso do hífen, o acordo estabeleceu a regra de hifenizar-se toda palavra em que o prefixo for seguido de uma palavra que seja iniciada pela mesma vogal do prefixo. Por exemplo: “microondas’ agora deve se escrever micro-ondas.
“Beleza. Então posso aplicar essa regra sempre?”
Nada disso.
Em “reeducar”, por exemplo, aplicando-se a regra acima, deveríamos ter “re-educar”. Ocorre que, por uma “tradição” incorporada da linguagem, teremos de continuar escrevendo “reeducar”.
No fundo, no fundo, o acordo ortográfico foi uma grande bananosa destinada somente a facilitar a vida das editoras. Antigamente, elas tinham de publicar um livro aqui e depois “traduzi-lo” para o português de Portugal para vendê-lo lá. E vice-versa. Agora, podem imprimir uma única edição e publicar lá e cá. Não à toa, o acordo foi imediatamente “incorporado” aqui no Brasil, enquanto em Portugal é raro, muito raro, encontrar qualquer publicação que atenda às regras do acordo ortográfico.
Certo estava Pasquale Cipro Neto, ao dizer que, como o acordo ortográfico previa a dualidade “língua antiga – língua nova” até 31 de dezembro de 2012, continuaria a escrever como sempre aprendeu e ensinou até 31 de dezembro de 2012.
No que toca a este que vos escreve, com seus pendores radicais, digo-vos desde já que continuarei escrevendo à moda antiga até 31 de dezembro de 2012.
E depois também…
Bem-hajas, Maximus! Do teu amigo e compincha português Rui
Salve, Salve, grande Rui! Que bom ter notícias suas. Obrigado pelos parabéns. Um abraço.
Mas nota que não existe inglês único ortograficamente, mas pelo menos (que eu saiba) duas variantes: a UK e a US.
Exemplos: labour, favour, etc. UK labor favor etc. US.
analyse, criticise etc. UK analyze criticize US
sceptic scepticism UK skeptic skepticism US (com diferentes realizações fonéticas aqui, em que sc se pronuncia como /s/ e sk assim mesmo).
Além das diferenças de vocabulário.
De fato, Rui. Acredito inclusive que você já havia dito isso no post original. De todo modo, foi bom você fazer a observação para que quem leia o post agora tome nota e não caia no mesmo erro. Um abraço.
A polêmica foi importante e contribuiu até mesmo como estímulo para melhor se conhecer a matéria. Não vou entrar no mérito, porém, toda ou quase toda mudança importante é objeto de reações antagônicas, que se confirmam ou não como justificadas com o passar do tempo.
Boa noite.
Com certeza, Comandante. Só o futuro dirá se o Acordo Ortográfico foi ou não benéfico. Mas o fato de sua obrigatoriedade ter sido adiada por pelo menos duas vezes, a última há dois anos, a meu ver é um indicativo forte de que ele traz mais prejuízos do que benefícios. Um abraço.