O Comício da Central do Brasil

Quem acompanha o noticiário deve ter sido avisado que hoje completam-se 50 anos do Comício da Central do Brasil. Como tudo relacionado àquele ano, o Comício da Central desperta nos analistas reações extremadas, à direita e à esquerda. Perdido no meio do tiroteio, o leitor acaba sem saber direito o que se passou e qual foi efetivamente a relevância histórica daquele comício. Com alguma pretensão e uma boa dose de sorte para tentar escapar das cascas de banana que a histórica costuma lançar contra quem se aventura a decifrá-la, é o que tentarei fazer aqui.

Antes de entender como se passou o Comício da Central, é preciso entender como se chegou a ele.

Em 1960, cansado da corrupção desenfreada e da inflação do fim do Governo JK, o povo brasileiro resolveu eleger Jânio Quadros para a presidência. Fina flor do reacionarismo, populista de mão cheia, Jânio era chamado pelos íntimos como “a UDN de porre”. Boa coisa não poderia sair dali.

E não saiu. Como não conseguisse governar com um mínimo de oposição, Jânio renunciou 9 meses depois de eleito. Na sua cabeça inconseqüente, imaginou que o povo sairia às ruas para pedir seu retorno. Confiou também na ojeriza dos militares a seu vice, João Goulart, que, além das raízes getulistas, estava do lado errado do mundo (na China, em visita oficial).

O golpe saiu pela culatra. Nem o povo saiu às ruas, nem muito menos os militares estavam dispostos a prestar vassalagem a um tipo que pretendia reinar como um imperador. Jânio fugiu de avião e, do governo, levou somente a faixa presidencial, jamais devolvida a seu legítimo dono.

Restava, contudo, saber o que fazer com o cargo vago.

Os três comandantes militares não tinha mandato popular, mas não lhes passava pela cabeça entregar a presidência ao sucessor constitucional. Por meio de intermediários e por uma sucessão de atos de intimidação, manifestaram sua opinião acerca da “absoluta inconveniência do retorno ao Brasil do Sr. João Goulart”.

Do lado debaixo do mapa, seu cunhado, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, lançou a campanha que garantiria seu nome na história: a Cadeia da Legalidade. Amparado nas forças do III Exército, Brizola quebrou tecnicamente o golpe que se armara contra a posse de Jango. Dali pra frente, arquitetou-se uma sucessão de conchavos e acordos de bastidores pelos quais Jango assumiria, mas como presidente de um regime parlamentarista.

Mas Jango nunca esteve disposto a ser Rainha da Inglaterra. Dois anos depois, convocou um plebiscito e desmontou o sistema parlamentarista. Ganhara a presidência de volta, mas restava saber o que faria com o país.

A situação era desanimadora. Economia em baixa, desemprego e inflação em alta, país sem acesso ao mercado externo, enfim… Nada muito promissor para um governante de primeira viagem. Como se isso não bastasse, a inabilidade política de Jango corroeu-lhe a base de apoio parlamentar. Tinha-se, assim, uma situação econômica adversa, com um parlamento pouco disposto a fazer concessões ao presidente.

Sem alternativas à direita, Jango resolveu dar uma de Getúlio e se apoiar “no povo”. É nesse contexto que surge o Comício da Central do Brasil.

Comício da Central do Brasil

Nesse Comício, Jango anunciou duas medidas de caráter claramente populista. Primeiro, expropriou as refinarias de petróleo particulares que ainda não tinham passado às mãos da Petrobras. Segundo, estabelecia a possibilidade de desapropriação de propriedades consideradas subutilizadas com o fim de promover a reforma agrária. Ambas constituíam a coluna vertebral daquilo que ficou conhecido como “Reformas de Base”.

Possivelmente, Jango não concordasse no íntimo nem com uma nem com outra medida. Ele, um latifundiário de estirpe, dificilmente poderia ser identificado como um simpatizante da “Reforma Agrária”. Mesmo assim, Jango resolveu baixar os dois decretos na esperança de que a comoção popular pelas reformas se transformasse em apoio nas ruas. Apoio que – quem sabe – seria suficiente para dobrar o Congresso indomado e deixar aquartelados nas casernas os militares que já conspiravam abertamente contra seu mandato. Foi aí que Jango se enganou.

Como toda pessoa em processo de autoengano, Jango provavelmente superestimou a si mesmo e subestimou a rejeição que despertava no restante da sociedade. Nem conseguiu apoio suficiente nas esquerdas – que sempre desconfiaram das intenções de um latifundiário metido a playboy -, e terminou de perder o pouco de apoio que ainda restava na direita. Menos de uma semana depois, meio milhão de pessoas da classe média sairia às ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade para pedir a deposição do Governo.

Daí pra frente, o que se viu foi o acirramento dos ânimos, tanto de um lado como de outro, culminando com o discurso de Jango aos sargentos sublevados no dia 30 de março, e a deflagração do golpe militar no dia seguinte.

Sublevação dos sargentos

Cinqüenta anos depois, o que o episódio do Comício da Central do Brasil ensina?

Ensina que jamais, em tempo algum, um presidente da República deve convencer-se de que, para se manter no cargo, a melhor coisa a fazer é esporear uma crise e alimentar a cizânia na sociedade. Quando isso acontece, o sistema constitucional e a própria democracia tomam o rumo da breca.

É o que se espera que o Brasil tenha aprendido depois de meio século.

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3 Responses to O Comício da Central do Brasil

  1. Avatar de Mourão Mourão disse:

    Você acha mesmo uma proposta de reforma agrária que apenas levemente corrigia as enormes distorções na divisão de terras no meio rural, onde o latifúndio grilado e improdutivo imperava era, à época. uma medida meramente populista? Ou não seria uma medida capaz de atenuar a crescente onda de revoltas no campo? Ocorre que o PSD se locupletava da situação rural e a UDN, com poucos votos em quase todo o Brasil, queria o poder a qualquer custo, vide Carlos Lacerda. Quanto a Jango, é fato, sua tentativa de agradar a direita e a esquerda acabou por enfraquece-lo entre os extremos de ambos segmentos. Porém, embora pouco se fale disso, Jango ainda contava com o apoio da maioria da população, embora entres as classes média e alta estivesse altamente desgastado. Além disso confiava demais no “esquema militar” do Ministro da Guerra Jair Dantas, que como se viu estava longe de apoiar o presidente, embora se este reagisse, provavelmente, teria abortado a aventura( assim considerada, em princípio, pelos próprios militares de cúpula) do gen. Mourão Filho, embora a intervenção militar já fosse algo plenamente decidido.
    E para não dizer que não falei de flores, dizem que vem por aí uma nova Marcha com Deus pela Liberdade”, desta vez muito possivelmente sem o maciço apoio da Igreja.
    Uma grande semana para você, meu caro aristocrata.

    • Avatar de arthurmaximus arthurmaximus disse:

      O problema não foi a proposta, Comandante, mas a forma pela qual ela foi feita. Sem lei aprovada pelo Congresso, o decreto de Jango valia nada. Associá-lo a outro decreto, de expropriação de refinarias, foi claramente uma medida populista, visando ao emparedamento do Congresso. O resultado, não preciso dizer, o senhor sabe bem qual foi. Quanto à reprise da Marcha, pedindo a volta dos militares, é apenas mais uma prova de que, no Brasil, o ser humano caminha na direção contrária da evolução. Um abraço.

  2. Avatar de Mourão Mourão disse:

    Nem todos os seres meu caro, mas talvez, não sei ainda, uma minúscula parte resistente às mudanças sociais, inevitáveis na vida dos povos, embora em todos os cantos do mundo haja retrocessos.
    Um abraço

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