O desaprendizado do português

Alguma coisa de estranho acontece ao sul do Equador.

Não, não estou falando de problemas econômicos, rolezinhos ou o cenário eleitoral para 2014. Trato, na verdade, de algo bem mais prosaico: o desaprendizado lento, gradual e constante da Língua Portuguesa. Parece mentira, mas, em um país que se regozija de ser um dos maiores do mundo no qual toda a população fala a mesma língua, o nosso tão querido português parece cada vez mais esquecido.

O problema não se resume ao analfabetismo, mal crônico do Colosso do Sul desde o Brasil Império. Claro que, em um país no qual 20 milhões de pessoas são analfabetas e mais de 30 são classificadas como “analfabetos funcionais” (IBGE), o respeito à norma culta deixou de ser prioridade há muito tempo. Mesmo assim, nem só de dificuldades básicas vive o drama linguístico brasileiro.

Com frequência cada vez maior, é possível ver nos estratos mais altos da sociedade vícios e erros de linguagem até bem pouco tempo restritos aos que efetivamente não tiveram acesso ao melhor tipo de educação. Era – e ainda é, infelizmente – comum ver gente que não terminou o curso primário escrever coisas como “menas” e “pra mim fazer”. Mas, a partir de certo nível de renda, os erros ficavam mais restritos ou, na pior das hipóteses, ficavam confinados àquelas hipóteses em que, vez por outra, até os mais eruditos escorregam (como “onde” e “aonde”, “há tantos anos atrás”, etc.).

Que fique bem claro não haver aí qualquer tipo de elitismo. Trata-se, apenas, de uma constatação fática de que, quanto maior o nível de renda, melhor o tipo de educação que se teve. E, quanto melhor o tipo de educação que se tem, potencialmente melhor o nível de escrita do sujeito. Isso, no entanto, deixou de ser verdade há muito tempo.

Nos diários, por exemplo, erros bizarros de português já não são mais exceções que se transmutam em “memes” na Internet, mas se tornaram uma incômoda regra, a ponto de ser difícil ler uma reportagem inteira sem encontrar algum vilipêndio grosseiro à língua de Camões. Mesmo em textos acadêmicos já não é assim tão raro encontrar gente escrevendo, por exemplo, “mais” onde deveria ser escrito “mas”.

Alguém poderia replicar: “Ah, mas, nesses casos, os erros vêm de gente que não é propriamente da área. Há muito tempo deixou-se de se exigir diploma de jornalista, e os cientistas dificilmente são versados na língua portuguesa”. Isso explica parte do problema, mas não o soluciona de todo.

É certo que o decaimento do nível de exigência acadêmica deve ter contribuído para a queda da qualidade escrita dos periódicos. Da mesma forma, o cientificismo ferrenho contribui para que a pessoa mergulhe na sua área de pesquisa e acabe se esquecendo de todo o resto – português, inclusive. Mas isso não explica, por exemplo, por que gente que deveria ter o vernáculo como instrumento de trabalho comete erros tão grosseiros.

Na área jurídica, por exemplo, é cada vez mais comum encontrar gente que não sabe sequer estruturar uma narrativa factual. É dizer: a pessoa não consegue nem mesmo contar uma história com começo, meio e fim.

Pra quem duvida, sugiro ler algum contrato ou comunicado enviado por uma grande empresa. Em 100% dos casos, os escritos passam por avaliação do setor jurídico, para saber se há alguma brecha que possa ser usada contra a empresa no futuro. O filtro pode até funcionar para as questões jurídicas, mas falha de forma grosseira no respeito ao vernáculo. É comum encontrar erros de conjugação – “está”, onde deveria haver “estar” – e bizarrices do tipo “a” ao invés de “há”.

Talvez nós estejamos pagando o preço tardio de uma geração que foi criada sob a crença de que “ler é chato”. Ou, talvez, estejamos pagando o preço de uma sociedade na qual falar e escrever corretamente tem cada vez menos peso em decisões cruciais, como a admissão em um emprego.

Seja como for, o fato é que esse problema já alcançou tal proporção que tende a se perpetuar. Uma vez que as pessoas que não sabem escrever corretamente alcançam níveis cada vez mais altos na carreira – como diretores de empresa e professores de universidades -, quem está embaixo acaba sendo obrigado de forma indireta a seguir errando. E essa repetição engendra um processo de retroalimentação difícil de ser combatido.

A melhor coisa a fazer, portanto, seria promover uma política de resgate ao uso correto do vernáculo. Campanhas promocionais, ao lado de um processo de requalificação em empresas e instituições, poderiam funcionar como estímulo para que os estudantes de hoje redescobrissem a beleza de escrever em um português castiço.

Porque, no Brasil, a derradeira flor do Lácio está cada vez mais inculta.

E cada vez menos bela…

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2 respostas para O desaprendizado do português

  1. K disse:

    O pior de tudo é que esse fenômeno do desaprendizado não se restringe apenas à língua portuguesa, mas alcança os mais variados âmbitos do conhecimento. Ao que parece, buscou-se no Brasil a popularização do ensino e cultura para que alcançasse o maior número de pessoas, esquecendo-se porém de manter níveis mínimos de qualidade. Isso é visível especialmente no ensino de nível superior, com o aumento de universidades que são muito mais centros comerciais do que instituições de ensino. Eu, sinceramente, tenho muitas dúvidas sobre se há realmente vantagem em aumentar o número de bacharéis e licenciados no Brasil ao preço de formá-los em universidades sem um padrão mínimo de qualidade. A mim parece que o que acabaremos por ter é um exército de profissionais despreparados para exercer as funções de sua área de formação, com prejuízo inegável a todos que dependerem desses profissionais e à sociedade em geral. A ver onde isso vai parar… Bjos

    • arthurmaximus disse:

      Concordo plenamente, K. Aqui, vulgarizou-se o entendimento de que todo mundo tem que ter um curso de nível superior, quando o nível universitário deveria ficar restrito aos que queiram efetivamente seguir a carreira acadêmica. Daí a proliferação de faculdades caça-níqueis como coelhos. E aí vamos sofrer nas duas pontas: um exército de profissionais “com diploma na mão”, mas sem qualificação necessária para o exercício do ofício; e falta de mão-de-obra em carreiras técnicas, tão necessárias ao nosso dia-a-dia. Realmente, é esperar pra ver onde é que isso tudo vai dar… Beijos.

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