Agora essa.
Há pouco mais de 15 dias, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ação penal 565, condenou o senador Ivo Cassol a aproximadamente 5 anos de reclusão. No meio das discussões, voltou à tona um assunto incômodo para Judiciário e Legislativo: a quem compete cassar parlamentares condenados em última instância?
Não que se trate de algo novo. O assunto já fora analisado aqui e pelo próprio STF no julgamento do Mensalão. Naquela oportunidade, decidiram os ministros que o mandato dos parlamentares condenados estaria automaticamente cassado com a decisão judicial. Ao Parlamento caberia apenas “dar cumprimento” à decisão da Justiça.
Restava saber, contudo, o que fazer com § 2º, do art. 55 da Constituição Federal, segundo o qual, mesmo em caso de condenação por sentença transitada em julgado, o deputado ou senador só perderá o mandato por deliberação da respectiva casa, em votação secreta e por maioria absoluta de seus componentes. Mais uma vez – ao menos no entender deste que vos escreve – estava novamente o Supremo Tribunal Federal a passar por cima do texto constitucional.
No entanto, no caso do senador Ivo Cassol, o STF – agora com os ministros Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso – decidiu pelo contrário: caberia à sua casa deliberar a perda do mandato. Confrontado pelo ministro Joaquim Barbosa com a possibilidade de o Senado resolver não cassar um dos seus, ainda que condenado em última instância, Luís Roberto Barroso não pestanejou: “Eu não sou constituinte”, dissera Barroso na oportunidade. Pior que isso. Barroso não teria recebido “um votinho sequer”. Mesmo declarando que o sistema estabelecido pelo constituinte “não era bom”, Barroso muito sabiamente declarou que a Constituição não era “aquilo que eu quero”. Do contrário, todos ali se transformariam em “usurpadores do Poder Constituinte”.
Nesse meio tempo, contudo, foi a votação na Câmara o caso do deputado Natan Donadon. Condenado a mais de 10 anos de cana dura, Donadon já curte sua temporada no Papuda’s Inn em Brasília. De lá, saiu com autorização judicial para acompanhar, como assim se esperava, seus colegas passarem seu mandato na lâmina.
Deu chabu. Como a Câmara quisesse provar que, no Brasil, o fundo do poço é móvel, suas excelências resolveram cometer harakiri coletivo e mantiveram Donadon com seu mandato. Como bem observou o Ministro Marco Aurélio depois da votação, os detentos da Papuda devem ter se sentido reconfortados. Afinal, havia agora um nobre deputado entre os seus.
Que a decisão da Câmara dos Deputados foi um acinte, não resta qualquer dúvida. Só mesmo no Brasil pode-se admitir que um sujeito cujos direitos políticos encontram-se suspensos por condenação criminal possa seguir ostentando o mandato representativo como se nada houvesse acontecido. É dizer: o sujeito não tem mais direito sequer a votar, mas pode continuar como representante do povo no Parlamento. No entanto, a questão é saber como se resolve essa aberração.
Do ponto de vista político, a solução está dada. Os nobres deputados que absolveram seu colega presidiário tem encontro marcado para outubro de 2014. Nas urnas, seus eleitores poderão decidir se um sujeito que entende não haver nada de mais em ver um cidadão encarcerado continuar como deputado deve merecer seu voto. Do contrário, manda-se o sujeito pra casa. Jogo jogado.
O que não pode acontecer é, no meio do caminho, o processo democrático ser atravessado por uma liminar justiceira de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Pior: uma liminar dada por um ministro que decidira exatamente o contrário há pouco mais de duas semanas. Com a mesma naturalidade de quem troca de vestes, Luís Roberto Barroso deixou de trajar a toga do juiz auto-contido e cônscio das suas limitações institucionais e se investiu a capa de vingador mascarado defensor da moralidade pública.
A decisão é insustentável, em primeiro lugar, porque não se pode admitir a existência de direito líquido e certo contra uma disposição expressa do texto constitucional. Pode-se reclamar à vontade do sistema existente e do instituto suicida da Câmara dos Deputados, mas não se pode, a esse pretexto, alterar com uma canetada as normas aprovadas pela Assembléia Constituinte.
A decisão é insustentável, em segundo lugar, porque estabelece um sistema esdrúxulo de cassação. Ao menos pelo que se depreende da decisão, Luís Roberto Barroso admitiria a continuidade do exercício do mandato parlamentar em casos de condenados a regimes aberto e semi-aberto. A cassação do mandato, portanto, ficaria condicionada à quantidade de pena a qual o parlamentar houvesse sido condenado. Noves fora o fato de que tal entendimento não tem qualquer amparo no texto constitucional, ele coloca de lado o ponto mais relevante de toda a discussão: a suspensão dos direitos políticos. É dizer: um parlamentar não deve perder o mandato porque foi condenado a regime fechado, mas porque, seja qual for o regime a que for submetido, a condenação criminal implica a suspensão do direito de participar da vida política do país.
A decisão é insustentável, em terceiro e último lugar, porque não se pode admitir que um ministro da mais alta corte do país vá de um extremo a outro de uma discussão em pouco mais de duas semanas com a naturalidade de quem muda a chave de um disjuntor. Por dever de honestidade intelectual, Luís Roberto Barroso tem no mínimo explicar as razões que o levaram a mudar tão radicalmente de opinião em tão pouco tempo. Sem isso, a previsibilidade do resultado de suas decisões não será muito diferente das do jogo de Cara e Coroa.
Também há pouco mais de duas semanas, este que vos escreve – esperançoso – se indagava: será que estávamos diante de um novo STF? Pelo visto, estamos de frente para um Supremo de nova roupagem, mas com a mesma velha prática de achar que “a Constituição é aquilo que o STF diz que é”.
Tristes trópicos…