Como já se disse e redisse neste espaço mais de uma centena de vezes, um dos grandes problemas do Brasil é a baixa qualidade de sua imprensa. Nem vou entrar aqui no mérito das teorias conspiratórias segundo as quais a grande mídia não passa de um instrumento através do qual a “elite” brasileira atua para manobrar a massa popular de acordo com seus interesses. Interessa-me, na verdade, algo bem mais prosaico: a crônica incapacidade de a imprensa enxergar meio palmo adiante do nariz.
Exemplo cabal do que estou dizendo ocorre com a possibilidade de assinatura de um acordo de livre comércio entre Estados Unidos e União Européia. O gigante resultante dessa união certamente traria consequências violentas para o comércio mundial. Mas tudo que a grande imprensa consegue enxergar é o eventual impacto desse acordo de livre comércio na economia nacional. Excluídos, Brasil e resto do mundo poderiam ver minguar suas economias ao perderem acesso para os dois maiores mercados consumidores do planeta. Ninguém se ocupa em perguntar, por exemplo: 1) por que EUA e UE buscam esse acordo?; e 2) para além dos evidentes efeitos econômicos, quais as consequências desse acordo para o sistema político mundial?
Primeiramente, há de se ter a noção de que comércio é guerra. Uma guerra civilizada, claro, mas ainda assim uma guerra. Quando um país ergue barreiras comerciais ou sanitárias, nada está fazendo além de empregar métodos, digamos, “aceitáveis” de combate para defender seus interesses.
Em segundo lugar, há de se ter a idéia do sistema de governança mundial. Depois do fim da II Guerra, arquitetou-se um esquema pelo qual as disputas ficariam a cargo de entidades multilaterais para congregar todos os países. Daí a criação das Nações Unidas como foro de debates políticos, e do FMI, Banco Mundial e GATT (depois OMC) para os debates econômicos.
Do ponto de vista formal, as instituições de governança mundial serviriam ao propósito de serem espaços democráticos, nos quais supostamente todos os países seriam tratados de forma igual. Na prática, contudo, todas as instituições pós-1945 tinham como objetivo estabelecer um lugar civilizado para que Estados Unidos e União Soviética pudessem equilibrar a balança de poder – traduzindo: mandar no mundo – sem recorrer ao holocausto nuclear para isso.
Por razões óbvias, havia uma nítida prevalência americana. Nas coisas em que não mandavam diretamente, os americanos se serviam de seus aliados europeus – na prática, seus capachos. Ou alguém acredita que o FMI, sob comando europeu desde sempre, tomou a qualquer altura alguma decisão contrária aos interesses americanos?
Com o fim da Guerra Fria, o sistema de governança mundial perdeu um pouco a razão de ser. Afinal, não havia mais pendengas entre americanos e soviéticos a resolver. Por isso mesmo, sem qualquer pudor, os Estados Unidos transformaram a ONU em uma mera extensão de seu departamento de Estado, apenas para legitimar sua ação imperial no planeta.
No entanto, com a decadência do poderio econômico dos EUA, instituições como a ONU e a OMC começaram a servir de palco para que países emergentes, como China, Índia e até mesmo o Brasil, pudessem exercer seus pleitos legítimos no âmbito internacional. Daí, por exemplo, a negativa de respaldo internacional à II Guerra do Iraque e as sucessivas vitórias brasileiras na OMC contra as práticas comerciais ilegais dos Estados Unidos. Em xeque, os americanos ficaram atados às regras que eles próprios criaram.
Sem força suficiente para exercer de forma imperial seu outrora incontestado poder, os americanos estão reagindo à sua maneira: desidratando as instituições de governança mundial. A lógica é a seguinte: “Não podemos ganhar o jogo seguindo as regras? Então, mudem-se as regras”. O avanço contra o sistema deu-se em duas frentes.
Primeiro, os americanos condenaram a ONU à absoluta irrelevância com a invasão do Afeganistão e do Iraque sem o aval do seu Conselho de Segurança. Depois, bloquearam a Rodada Doha da OMC, de modo a que não ficassem impedidos de continuar concedendo os enormes subsídios que gastam com seus agricultores.
Agora, com a assinatura do tratado de livre comércio entre Estados Unidos e União Européia, joga-se a pá de cal em cima do sistema mundial de comércio. Como os acordos bilaterais situam-se à margem das regras da OMC, quem quiser continuar no jogo terá necessariamente de se adaptar às regras deles para não perder mercado internacional.
Enquanto os americanos puderam mandar e, sobretudo, desmandar no mundo à sua maneira, instituições como a ONU e a OMC eram esplêndidas e sua criação era exemplo de civilidade para o mundo. Agora, tornados reféns das regras que eles mesmos criaram, os americanos viram a mesa para poder continuar ganhando o jogo. Daqui pra frente, começaremos a ouvir cada vez menos “negociações multilaterais” e cada vez mais “acordos bilaterais”.
Era uma vez o sistema de governança mundial…