O noticiário jurídico-político tem sido balançado nos últimos dias pela candidatura de duas filhas de ministros do Supremo Tribunal Federal ao cargo de desembargador. Letícia Mello, 37, e Marianna Fux, 32, estão na lista tríplice, respectivamente, para o Tribunal Regional Federal da 2ª região e para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Trata-se do último passo antes da escolha decisiva que cabe, no primeiro caso, pela Presidente da República e, no segundo, pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro.
Além da pouca idade, argumenta-se que ambas não possuem a necessária experiência e qualificação que o cargo exige. Insinua-se, também, a possível influência dos respectivos pais no processo de escolha. Não quero aqui entrar no mérito das indicações, até porque não conheço nenhuma das duas. Mas a polêmica serve de mote para tratar de uma das maiores aberrações no sistema judiciário nacional: o chamado quinto constitucional.
Previsto no art. 94 da Constituição Federal, o instituto prevê que “um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes”.
O processo de escolha segue mais ou menos o mesmo rito, tanto no Ministério Público como na Ordem dos Advogados. Pela sistemática atual, MP e OAB revezam-se nas indicações do quinto, de maneira que cada entidade representativa mantenha mais ou menos a metade do quinto a que têm direito. Abre-se um processo de escolha na própria classe, que elabora uma lista com seis nomes. Depois, esta lista é enviada para o Tribunal, que a reduz para três nomes. A lista tríplice é, por fim, enviada ao chefe do Executivo, que aponta o escolhido. Uma vez ungido, o eleito ingressa diretamente no tribunal, com todas as garantias e prerrogativas do cargo de desembargador.
No caso do Superior Tribunal de Justiça, o caso é ainda mais grave, pois nada mais, nada menos do que um terço (11) das vagas está reservada para membros do MP e da classe dos advogados. Isso sem falar nos que chegam lá nas vagas de desembargador federal (11) ou estadual (11) depois de terem alcançado o próprio cargo de desembargador pelo quinto.
Deixando-se de lado o evidente desestímulo à carreira de juiz, o quinto é uma aberração desde sempre. Criado na época de Getúlio Vargas para justificar a nomeação de um deputado – cujo nome agora não me recordo – para um tribunal, o quinto foi se institucionalizando de maneira tal que, incorporado à paisagem, ninguém mais se dá conta do absurdo que representa.
Pelo quinto, admite-se que sujeitos sem qualquer experiência no ofício judicante sejam alçados diretamente a órgãos de segundo grau, responsáveis pela revisão e fiscalização dos julgados de 1º grau. É dizer: um sujeito que nunca julgou ninguém na vida agora está na delicada posição de julgar o trabalho de quem julgou outras pessoas.
As justificativas para a sua existência são as mais esdrúxulas possíveis.
Argumenta-se, por exemplo, que o quinto serve para “oxigenar” os tribunais. Noves fora o fato de que o termo implica uma depreciação implícita aos juízes de carreira – que supostamente “engessariam” seu pensamento com o passar do tempo -, não há qualquer garantia de que o ar trazido de fora seja mais limpo do que o circula dentro do tribunal. Pelo contrário. As eleições para o quinto constitucional, tanto no MP quanto na OAB, guiam-se muito mais uma lógica de poder – qual grupo interno tem mais poder para eleger o seu representante – do que propriamente por uma lógica meritocrática. É por essas e por outras que houve casos nos quais ocorreu o exato oposto: integrantes do quinto, com passado nada ilibado e sem qualquer conhecimento jurídico, “importando” para o tribunal as mesmas práticas nada virtuosas de seus tempos de promotor ou advogado.
Há também quem defenda o quinto com base no fato de que a advocacia e a promotoria, como funções essenciais à Justiça, devem também estar representadas nos tribunais. Ora, tanto uma como outra estão lá representadas o tempo todo. A questão da “representação” das classes nos tribunais deturpa aquilo que deveria ser entendido como atuação nos respectivos âmbitos de competência para transformar o tribunal em um “conselho” no qual cada “guilda” quer ter seu membro. Promotor participa de tribunal acusando e atuando como fiscal da lei. Advogado participa defendendo e patrocinando causas. O entendimento segundo o qual a “participação” do MP e da advocacia só pode se dar através da indicação de membros a desembargador reduz o tribunal a um “mesão” de sindicato, no qual cada representante votaria em favor dos interesses de sua “categoria”. Na verdade, os tribunais são órgãos responsáveis pelo dever de julgar, ofício que compete a juízes, não a representantes de classe.
Que o quinto constitucional deveria acabar, não resta dúvida. Difícil é saber se um dia haverá massa crítica suficiente para quebrar a carapaça corporativista que o mantém no cenário.
Isso para mim é uma aberração que compromete, distorce e corrompe o trabalho da Justiça e alimenta irregularidades, pouco denunciadas e menos ainda combatidas, particularmente pela nossa valorosa mídia tão empenhada a denunciar corrupção … dos outros.
Bom resto de semana.
É isso aí, Comandante. Bom resto de semana pro senhor, também. Um abraço.