O advogado do diabo

Ontem saiu a notícia de que os bispos e cardeais da Congregação para a Causa dos Santos reconheceu o segundo milagre realizado pelo Papa João Paulo II. Depois de sua elevação à categoria de beato, Karol Wojtyla depende agora apenas de procedimentos burocráticos – e, claro, o beneplácito papal – para alcançar a santidade. Trata-se de um bom gancho para falar de uma figura praticamente esquecida nos dias de hoje: o Promotor da Fé, ou, como ficou popularmente conhecido pela comunidade católica, o “advogado do diabo”.

Pra muita gente pode parecer estranho, mas os processos da Santa Sé seguem um rito preestabelecido para quase tudo: desde a ordenação de padres até o casamento de fiéis. É pra isso que existe o Direito Canônico, estrutura de regras que regula a relação entre os homens da Igreja e sua própria vocação religiosa. Como seria de se esperar, a santificação de gente também.

Desde o século X, o Papa João XV estabeleceu um rito oficial para declarar a santidade de alguém. Primeiramente, um bispo do local fica responsável por investigar a vida da pessoa e buscar evidências de que aquele sujeito realmente levava uma “vida santa”. De posse disso, as evidências são enviadas para a Congregação para a Causa dos Santos, formada por bispos e cardeais. Uma comissão, então, analisa as evidências apresentadas. Se estiver tudo ok, o Papa declara o sujeito “venerável”, ou seja, reconhece que o sujeito era um modelo perfeito das virtudes professadas pelo catolicismo.

Depois da declaração da condição de “venerável”, a coisa fica mais difícil. É necessário provar que houve um milagre – ou seja, um acontecimento surpreendente que não pode ser explicado pela ciência – atribuível ao sujeito depois de sua morte. O milagre póstumo habilita o cidadão a alcançar a condição de “beato”.

Uma vez “beato”, resta por fim comprovar um segundo milagre póstumo. Provado este, o sujeito pode, enfim, ser declarado “santo” pelo Papa.

Antigamente, no entanto, havia uma pedra no meio do caminho. Para dar certa isenção ao processo de beatificação e santificação, a Santa Sé designava um sujeito apenas exercer o ceticismo quanto aos feitos atribuídos ao candidato a santo. Sua tarefa era desconfiar de tudo e, na medida do possível, contestar efetivamente a postulação de quem desejava tornar santo o morto. Designado oficialmente como “Promotor da Fé”, essa figura “chata” acabou ficando conhecida popularmente pelo apelido que lhe pespegaram nos maldosos corredores do Vaticano: o advogado do diabo.

Estabelecido em 1587 no direito canônico, o advogado do diabo era responsável por encontrar falhas no processo de santificação e, com alguma sorte, fazer com que o pretenso candidato não alcançasse a santidade. Com o tempo, o vulgo popular acabou trazendo para a linguagem comum a expressão, que passou a designar o cidadão “cri-cri”, aquele que fica encontra defeito em tudo e, mesmo quando não os encontra, cria-os apenas para marcar posição.

Em 1983, no entanto, o Papa João Paulo II acabou com a figura do Promotor da Fé. Com o fim do advogado do diabo, o número de canonizações explodiu. Até então, a Igreja Católica canonizara aproximadamente 500 santos em toda a sua história. Nos últimos 30 anos, no entanto, já foram santificados mais de 1300. Isso permite concluir que o advogado do diabo, por mais chato que fosse, contribuía de forma decisiva para impedir a explosão do número de santos.

Curiosamente, o processo de santificação de João Paulo II acabou não contando com a figura que fora por ele extinta. De certa forma, o velho e bom João de Deus acabou – sem intenção, é claro – “legislando em causa própria”.

Tudo bem. Como ou sem advogado do diabo, ele seria reconhecido como santo, mesmo.

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