Quem acompanha o blog já há algum tempo, provavelmente não tem qualquer dúvida acerca das convicções democratas deste que vos escreve. Aliás, esse talvez seja o ponto mais batido deste espaço: desde a condenação a golpes de qualquer natureza até a ojeriza a deformações institucionais, como um Supremo legislador. Diante desse momento verdadeiramente histórico pelo qual passamos, talvez convenha ser um pouco mais explícito na defesa desse ponto de vista.
Dentre todos os direitos fundamentais estabelecidos ao longo dos séculos em favor dos homens, nenhum é mais importante do que a liberdade. Liberdade para se locomover, liberdade para se mexer, liberdade para negociar e – mais importante – liberdade para pensar. Nenhum homem pode ser verdadeiramente um cidadão se não for livre; esse o primeiro ponto.
A questão é: qual a melhor forma de exercer essa liberdade? Sim, porque uma liberdade irrestrita, desprovida de regras de conduta e regulamentos acabaria nos levando inevitavelmente ao caos. Pior que isso. Como ninguém aguente viver no caos por muito tempo, acabaria aparecendo alguém que impusesse o respeito a um certo código de conduta pelo simples uso da força. Em uma só palavra: tirania (e todas as suas derivações, como a ditadura).
Até hoje, ninguém inventou um sistema melhor de exercício de liberdades do que a democracia. Graças a ela, divergências são resolvidas na base da conversa. Se não puderem sê-lo, há sempre o recurso ao Poder Judiciário. E, de tempos em tempos, os rumos da cidade, do estado e do país são escolhidos pela maioria nas urnas. Quem tiver mais votos, leva. O lado que perde a eleição lambe as feridas e tenta de novo na próxima. Esse é o jogo jogado.
Quem leu o post de ontem pode ter ficado com a impressão equivocada de que a força das ruas pode, no limite, derrubar governos eleitos, e que isso seria uma forma de democracia. Salvo a hipótese de revolução contra um governo tirano instalado de forma autoritária, qualquer solução que passe pela derrubada dos poderes instituídos é uma saída anti-democrática. Ou, de forma bem clara: é golpe.
“Ah, mas então a derrubada do Collor foi golpe?”
Negativo. Com a massa nas ruas, o sistema político reagiu e deu-lhes uma resposta dentro do sistema democrático: o impeachment. Do ponto de vista metafórico, pode-se até afirmar que “as ruas derrubaram Collor”. Mas quem efetivamente o fez foi o Congresso, eleito pelo povo. Tudo dentro das regras democráticas, sem recurso a levantes populares ou a gorilas insuflados por vivandeiras.
Para o democrata convicto, mesmo a utilização do impeachment deve ser excepcional. Somente nos estritos casos em que se autoriza o recurso a ele – crimes de responsabilidade, atentado contra as instituições, etc – pode-se pensar em destituir um prefeito, um governador ou um presidente eleito. Não se pode banalizá-lo a pretexto da insatisfação popular com o governante. Do contrário, estará banalizado o compromisso do eleitor com o voto.
Na verdade, a melhor forma de educar o povo a votar bem nas eleições é justamente a garantia de que o eleito irá cumprir o seu mandato. Quer votar nessa figura? Tudo bem, mas terá que agüentá-la por quatro anos. Sem choro, nem vela.
Se se admitir a hipótese de derrubada de um governante eleito fora das hipóteses estritas de impeachment, no limite de que adianta o povo ir às urnas de quatro em quatro anos? Se na primeira crise eu puder destituí-lo, por que devo me preocupar com a escolha de “em quem eu vou votar”?
Não, não. Democracia é antes de tudo responsabilidade. Responsabilidade que deve ser exercida de maneira altiva e compromissada. Do contrário, tudo pode se perder.
Que as massas tenham saído à rua para expressar seu descontentamento, foi a melhor notícia que ocorreu no Brasil neste milênio. Mas, parafraseando Ben Parker, à descoberta do grande poder das ruas deve corresponder a grande responsabilidade de saber exercê-lo.
Democracia deve ser uma convicção. Eis o espírito que deve governar as massas espalhadas pelo Brasil.
Meu caro democrata aristocrata (sem rima). As massas nas ruas para protestar contra tudo, que seja algo maravilhoso. Porém, eu acho delirante não ver que quase todos, com raríssimas exceções mesmo não descambem para pancadaria, vandalismo, roubo, castração do direito de ir vir dos que precisam trabalhar estudar, realizar alguma atividade que não seja o engajamento nas manifestações. São inúmeros os exemplos de violência das massas no mundo, porém, mesmo nos regimes considerados altamente democráticos como na Holanda, França e Alemanha do pós guerra, a violência é combatida como muito rigor, com violência mesmo, pelos dos órgãos de repressão. A liberdade não pode se resumir a, apenas, quem clama por ela nas ruas(com consciência ou de forma puramente alienada, por pura imitação). O respeito à propriiedade alheia, construída muitas e muitas vezes com sacrifício( exemplo talvez do carrinhao usado, comprado a prazo, incendiado por quem está dentro de um massa que exige justiça) , não pode ser tolerada em nome de uma reivindicação difusa, com legítimos propósitos de muitos e, também, com interesses escusos, ideológicos, partidários, de também muitos.
Meu caro Comandante, não acho que a idéia de manifestação implique a necessidade de vandalizar o patrimônio alheio ou fazer saques. Concordo inteiramente que os responsáveis por tais sandices têm de ser punidos. Mas a isso se responde com os mecanismos que o regime democrático dispõe – polícia, MP e Judiciário – para, ao final, ser condenado dentro de um devido processo legal. Não se pode, a pretexto de impedir o vandalismo de uns poucos, impedir a livre manifestação do povo nas ruas. Um abraço.
Concordo plenamente, meu caro.O difícil é ver apenas “uns pouco” praticando mandonismo. Segundo mais difícil ainda, a não ser por soluções mágicas separar os vândalos. ladrões dos que os apoiam e mais ainda distinguir numa massa informe que avança em direção à polícia que é ou não bem intencionado. Democracia parece um conceito muito amplo. Quando os atos não atingem os nossos interesses diretos é bem mais fácil concordar com os protestos e ver como algo secundário a violência.
Não acho que seja assim tão difícil identificar os vândalos, Comandante. Outro dia, em São Paulo, pegaram um estudante de arquitetura que tentava derrubar o portão da Prefeitura. No caso da invasão do Itamaraty, já conseguiram identificar o sujeito que jogou o coquetel Molotov e outro, que arremessava pedras. É questão da Polícia ir atrás. Material para identificação – na forma de vídeos de gravação – é o que não falta. Um abraço.
Só para finalizar. Dois exemplos, entre milhares e e milhares de atos criminosos. São turbas ,saber quem é quem em meio de correrias, rostos mascarados, tomadas de filmagem que não mostram rostos, locais pouco iluminados, fogo criminosamente ateado, é tarefa quase impossível em muitos casos. Além disso, identificar nominalmente um mero rosto entre tantos outros já é tarefa muito difícil.
Um abraço.
Interessantes as colocações do Comandante. As massas são mesmo violentas.
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