A caixa de Fux, ou O imbróglio da votação dos vetos presidenciais

É na Ilíada que, em certa passagem, Homero faz referência a duas grandes jarras (não caixas) existentes na casa de Zeus. Dentro de uma delas, o todo-poderoso do Olimpo colocara todos os males do mundo: velhice, doenças, vícios, pragas, etc. Zeus confiou a guarda dessa jarra a Pandora, a primeira mulher criada por ele, dando-lhe a seguinte ordem: nunca, sob hipótese alguma, Pandora deveria abri-la.

O que Zeus não disse aos demais condôminos do Olimpo foi que Pandora fora criada para punir os homens, depois que Prometeu roubara o segredo do fogo para entregá-lo aos homens. Por meio de um ardiloso estratagema, Zeus conseguiu que Epimeteu, irmão de Prometeu, se cassasse com Pandora. Ao receber de presente de casamento a jarra, Pandora, curiosa como só ela, abriu-a, espalhando a desgraça pelo mundo. Dentro, restou tão-somente a ilusória esperança.

Que é demasiado metafórica, não há qualquer dúvida. Muito provavelmente, a história da mitologia grega é uma variante da versão bíblica da criação do mundo, segundo a qual Deus proibira o homem de provar do fruto da árvore do conhecimento. Seduzida pela serpente, Eva provou do fruto e convenceu Adão a fazer o mesmo. Ao saber do desplante, Deus ficou furioso, expulsou ambos do Paraíso e condenou a humanidade a sofrer todas as misérias do mundo.

Seja como for, para todo o sempre, o fato é que a “Caixa de Pandora” ficaria marcada para sempre como sinônimo de inconseqüência que acarreta males indizíveis. Provavelmente sem querer, o Ministro Luiz Fux pode ter caído na mesma armadilha.

Desde o ano passado, desenrola-se no Congresso a disputa entre estados produtores e estados não-produtores de petróleo acerca da distribuição dos royalties da exploração. Não pretendo entrar aqui no mérito da discussão. O fato é que a atual forma de distribuição favorece mais a dois estados – Rio de Janeiro e Espírito Santo – e os outros 25 querem ficar com um pedaço maior do bolo quando o óleo começar a jorrar dos poços do pré-sal. Como 25 é maior do que 2, eram favas contadas que a repartição dos royalties seria aprovada no Congresso.

Dilma Roussef vetou a empreitada. Contrariados, os governadores dos 25 estados não-produtores bateram o pé e mobilizaram suas bancadas para derrubar o veto. Coisa simples, porque a derrubada de um veto precisa apenas da maioria absoluta dos votos das duas casas do Congresso, reunidas em sessão conjunta. Pra piorar, a votação é secreta, o que favorece os deputados que queriam derrubar o veto mas temiam eventuais retaliações do Governo.

O problema é que, até chegar ao veto dos royalties, havia uma fila de mais de 3.000 vetos a ser apreciada. Para fazer com que o veto dos royalties fosse logo apreciado, operou-se algo tão legal quanto rotineiro nas sessões do Congresso: a aprovação de um pedido de urgência para a votação.

Certos da derrota, a bancada do Rio em desespero, através do Deputato Alessandro Molon, ingressou com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal para impedir a votação. E foi aí que a porca começou a entortar o rabo.

Desde sempre, o Brasil vive uma situação esquizofrênica quanto às proposições legislativas. Pela estrutura arquitetada na Constituição, a última palavra sobre a aprovação de leis é do Parlamento. Por mais que o Presidente tenha poder de veto – e isso não é pouca coisa – o Congresso Nacional, de forma soberana, pode derrubar o veto e forçar a aprovação de uma norma, mesmo contra a vontade do Chefe do Executivo.

No entanto, como no Brasil a tripartição de poderes é quase uma fantasia de carnaval – bonita pra mostrar, mas ninguém quer usar no dia-a-dia – o Executivo pressionava o Congresso a não votar os vetos, seja por intermédio de pressão sobre o Presidente do Senado – a quem incumbe organizar a pauta -, seja por intermédio de pressão sobre sua base aliada, negando quórum às votações. Com isso, os vetos se acumulavam e se eternizavam nos escaninhos do Parlamento.

A questão é que a letra da Constituição é muito clara ao determinar que “Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final” (art. 66, § 6º). Pretende-se, com isso, justamente impedir que o Congresso se demita de suas funções deliberativas e transfira, implicitamente, o poder de dar a última palavra sobre a aprovação de leis ao Presidente da República.

Pois bem. O MS foi distribuído ao Ministro Luiz Fux. Fux determinou ao Congresso que se abstivesse de votar qualquer coisa enquanto não fossem votados, por ordem cronológica, todos os vetos anteriores. Com isso, a liminar impedia até mesmo a aprovação do orçamento da União.

Primeiro pela imprensa e depois por um constrangedor despacho de meia-volta, Fux deu o dito pelo não dito: disse que a liminar referia-se unicamente à votação dos vetos, não tendo qualquer relação com outras proposições. Para fazer nexo, a interpretação de Fux teria de subverter o sentido literal do disposto no § 6º do art. 66 da Constituição Federal. Onde se lê “sobrestadas as demais proposições”, se deveria ler “sobrestadas as votações dos outros vetos”. De todo modo, o orçamento estava liberado para votação.

All’s well that ends well?

Negativo.

Se antes o Executivo ficara apreensivo pela falta de orçamento para tocar o barco, a apreensão tornou-se desespero quando a AGU se deu conta de que a votação dos vetos em ordem cronológica poderia colocar em xeque o equilíbrio orçamentário da Nação. Atirando no que viu – a derrubada do veto dos royalties -, Fux acabou acertando onde não tinha visto – o fato de que a imensa fila continha vetos cuja derrubada prejudicaria o Executivo muito mais do que a simples redistribuição da renda do petróleo. Há vetos cuja derrubada pode trazer prejuízos bilionários para a União, como o do crédito do IPI. Fora isso, há vetos politicamente delicados, como os do Código Florestal. Se o Congresso tiver de apreciar todos eles, um a um, não são nada desprezíveis as chances de que caiam sob o manto da votação secreta.

Olhando-se em retrospectiva, melhor seria se Fux não tivesse interferido na pauta legislativa. Há muito o Congresso vem tentando recuperar o chamado “poder de agenda”, isto é, a capacidade de ditar quais projetos votará. Conseguiu até mesmo subverter, com uma interpretação canhestra, o trancamento de pauta por conta das medidas provisórias, através de uma decisão do então Presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer. Curiosamente, naquela oportunidade, o Supremo chancelou o resgate do poder de agenda, através de uma decisão do Ministro Celso de Mello (MS 27.931). Com a decisão de Fux, a iniciativa voltou à estaca zero.

Olhando-se para o futuro, no entanto, a decisão de Fux teve o mérito de trazer à baila a discussão acerca da deformação institucional representada por um Congresso que se nega a votar vetos com quase duas décadas de idade.

Confesso que não sei como esse imbróglio se resolverá. A única coisa certa é que o Ministro Luiz Fux abriu uma caixa sem ter idéia do que se continha dentro dela. E o mal, depois de liberado, nunca volta para o seu claustro.

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3 Responses to A caixa de Fux, ou O imbróglio da votação dos vetos presidenciais

  1. Avatar de Marden Marden disse:

    Cara, minha opinião é a de que a decisão do Fux tem fundamento, mas, como acontece muitas vezes, foi privada de bom senso; ao desprezar todo o contexto que envolve a matéria. Não dá pro cara simplesmente ignorar o fato de que existem 3 mil vetos pendentes, porque a decisão, como tomada, condena o Congresso Nacional a passar meses (pelo menos!) trabalhando só com isso… Talvez nem com tempo suficiente seja viável!

    Acho que o ideal teria sido proferir uma decisão com efeito ex nunc (pois colocaria ordem na casa), determinando ainda votação gradual dos vetos pendentes e responsabilização de quem não cumpriu a Constituição. Acontece que a decisão que atende ao bom senso não atende ao interesse político do Fux, então cá estamos, mais uma vez entre a cruz e a espada, tendo de decidir se cumprimos a decisão judicial ou damos um “jeitinho” que torne viável o funcionamento do Congresso Nacional.

  2. Pingback: Crônica de um conflito institucional anunciado | Dando a cara a tapa

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