Zapeando as notícias na noite de ontem, vi que o Ministério Público Federal de São Paulo ingressou com uma ação, com pedido de liminar, pedindo a retirada da expressão “Deus seja louvado” das cédulas de Real.
O tema não é novo. Na verdade, é mera variação de outro tema já batido e rebatido, que vem e volta de acordo com a moda: a retirada dos crucifixos dos tribunais espalhados por todo o país. Trata-se, em suma, de mais um capítulo da séria série “Falta do que fazer”.
A argumentação jurídica é sempre a mesma. No Brasil, Estado e Religião militam em lados opostos. Qualquer referência a entidades divinas seria, por assim dizer, uma “ofensa à liberdade de religião de todos os cidadãos”, como disse o MPF em sua inicial. Constrói-se, portanto, a partir de um raciocínio simplório, um precário silogismo segundo o qual: 1 – O Estado é laico; 2 – A moeda é um símbolo nacional; 3 -Logo, nenhuma representação física da moeda pode conter expressões religiosas.
Onde está o sofisma?
O sofisma reside na equiparação entre Estado laico e estado ateu. Para explicar a diferença, voltemos um pouquinho no tempo.
Com a formação dos estados nacionais no fim da Idade Média, boa parte – a imensa maioria, na verdade – incorporou algumas práticas verdadeiramente medievais. Dentre elas, a reunião entre Estado e Igreja. Todo estado confessava uma fé particular e, em quase todos os casos, os que não comungavam dela eram mortos, expulsos e/ou convertidos à força. A perseguição religiosa fez de países como a Holanda, por exemplo, refúgios seguros para crentes de outras religiões, por permitirem a liberdade de culto. Estávamos no tempo dos estados confessionais.
Essa reunião entre Estado e Igreja acabou por misturar de forma deletéria os interesses dos representantes dos poderes estatais e os membros do clero. Era comum ver sacerdotes ocupando postos na burocracia estatal, até mesmo exercendo altos cargos, como foi o caso do Padre Feijó, regente do Império. Da mesma forma, a nomeação de bispos e a eleição de cardeais acabavam submetidas ao jogo baixo da politicagem mais barata, com gente do Governo fazendo campanha pelos seus candidatos mais simpáticos. Era chegada a hora de instituir um Estado secular.
O secularismo deita raízes na Antigüidade, mas ganhou força mesmo a partir de meados do século XVIII e princípios do século XIX. Com as costas marcadas por séculos de ascendência desastrosa por parte da Igreja de Roma, as potências européias começaram a abraçar a idéia de separar Estado e Religião. No Brasil, embora a Constituição de 1824 aceitasse a liberdade religiosa, havia um credo oficial: o catolicismo apostólico romano. Ele só veio a cair com a proclamação da república e, desde a Constituição de 1891, o Brasil tem se mantido um Estado laico, ou seja, um Estado que não professa qualquer fé.
“Então quer dizer que o Brasil é um país ateu?”
Não. Absolutamente, não.
O ateísmo rejeita expressamente a crença no divino, seja ele de que forma for. Para o ateu, não há entidades sobrenaturais que governam o universo e os desígnios do mundo. Já o laicismo não rejeita a existência de uma entidade mítica, mas tão-somente prega que a religião não deve se meter em assuntos de governo, nem muito menos o governo meter o bedelho em assuntos religiosos. É a expressão do ensinamento secular segundo o qual cada macaco deve ficar no seu galho.
No caso brasileiro, as constituições em geral têm proclamado a crença do povo – pelo menos, a imensa maioria dele – na existência do divino. Curiosamente, as únicas constituições que não fizeram referência à existência de Deus foram as de 1891 e a de 1937, ambas outorgadas. No mais, todas as democráticas que foram promulgadas mencionavam a existência de Deus e rogavam por sua proteção na elaboração da carta. A de 1988 não foi diferente. Assim diz o preâmbulo:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”. (o grifo é meu)
A referência à proteção divina para a promulgação da Carta afasta qualquer possibilidade de que a menção a símbolos religiosos seja uma ofensa a direitos individuais. O Estado brasileiro é laico, sim. Ateu? De forma alguma. A Constituição Brasileira é, portanto, teísta.
É bom lembrar também que a menção do preâmbulo não faz remissão necessariamente à fé católica. Se a referência fosse à Santíssima Trindade, tudo bem. Mas Deus pode ser qualquer Deus; católico, muçulmano, judeu. Em todos os casos, muda-se apenas o nome da figura (Jeová, Allah e Javé). Mas a representação de uma entidade divina é a mesma.
Outra questão está na identificação errada da moeda como símbolo nacional. Segundo a Lei nº. 5.700/71, são símbolos nacionais: a bandeira, o hino, as armas e o selo. Não há qualquer referência à moeda. Fora isso, nenhum dos símbolos contém qualquer alusão a Deus. Nem mesmo o hino, composto à época do Brasil Império. Portanto, mesmo que a referência a alguma entidade divina fosse algo que violasse a liberdade religiosa, o fato de nenhum símbolo nacional conter essa expressão bastaria para caracterizar o respeito a tal princípio.
Por isso, pode-se afirmar sem medo que a referência nas cédulas de Real – e, de resto, todas as demais referências, como os feriados religiosos – são expressões de crença permitidas pela Constituição.
Fora isso, a cruzada contra a expressão “Deus seja louvado” dissemina a falsa impressão de que esse é um assunto relevante. Os problemas do Brasil são vários, mas, graças a Ele, a religião não está entre eles. Ao contrário de alguns países do mundo, em especial os do Oriente Médio, não há conflitos religiosos no país. Salvo uma ou outra seita picareta que surge para tomar o dinheiro de gente desavisada, o conforto religioso é sempre benéfico para o convívio social. Afasta a pessoa dos vícios (drogas, álcool, tabaco) e prega a paz entre os semelhantes. Sob esse aspecto, Deus tem mais é que ser louvado, mesmo.
Os problemas mesmo estão na falta de educação, na falta de saúde e na falta de segurança pública, problemas cujas responsabilidades de solução recaem sobre os ombros dos poderes seculares – MPF inclusive -, não a entidades religiosas.
Ao invés de buscar os holofotes fáceis que a cruzada anti-religiosa atrai, o MPF deveria se preocupar com problemas que realmente afetam o cotidiano da população: violência, corrupção, descaso, etc. Do contrário, continuará se arriscando a ouvir essa incômoda pergunta:
“Não tinha nada melhor pra fazer, não?”
Sua argumentação é muito boa e esclarecedora. Parabéns. Patty
Obrigado, Patty. Beijos.
eu li na uol (salvo engano) que pastores evangelicos estavam fazendo campanha para boicotar a novela SALVE, JORGE por conta do titulo, que, de acordo com tais pastores, saudava um santo da macumba. gostaria de saber se a noticia procede e se gostarias de comentar.
Desconheço qualquer coisa do gênero, Rômulo. Se vir, pode ser um mote interessante para um post sobre religião. Um abraço.
Nunca vi tanta bobagem em um único post. Como não quero perder meu tempo rebatendo cada uma das inúmeras falácias desse artigo, foi escolher destruir apenas uma. Proibir a divulgação e, por conseguinte, a defesa de determinada religião por parte do poder público não é defender Estado ateu, mas sim estado laico, e é uma exigência constitucional. A promoção de estado ateu haveria se ocorrece a expressa defesa por parte do Estado da não exigência de deus, e não é isso que se pede. O que as pessoas de bom senso querem é a neutralidade do Estado em relação à religião, e não a defesa do Estado ateu. O argumento que a religião cristã é majoritária não invalida o pedido de respeito às outras crenças (ou descrenças) minoritárias. O autor do post, é claramente uma calora católica, criado e educado nesse mundo fantasioso que é a religião (principalmente a cristã), aparentemente não se dá conta de como é constrangedor para uma pessoa que não acredita nesses superstições bobas ter que conviver diariamente com essas idéias promovidadas pelo próprio Estado, e sustentado pelo dinheiro do contribuinte. O pior é que grande parte dos juristas brasileiros têm a mesma opinião do autor do blog. Isso é mais um dos sinais que quão mal está o judiciário brasileiro.
P.S. E não me venha com essa conversa furada que essa discussão é perda de tempo, pois ela trata de direito fundamentais muito caros, principalmente para os que sofrem com sua violação diariamente.
Meu caro von Manstei, recomendo ler novamente o texto. “Deus” pode ser qualquer deus, de qualquer religião. A Constituição brasileira é teísta, como está assinalado em seu preâmbulo. Logo, a referência a um ser supremo não a desrespeita. Curioso é você falar em falácias e recorrer à famosa “ad hominem” para desmerecer os argumentos expostos sob o pretexto de que sou “uma calora católica”[sic]. Mais curioso ainda é o nobre nazista reclamar da violação de seus “direitos fundamentais” por conta da expressão “Deus seja louvado”. Devo supor que nos feriados religiosos o ateu filonazista deve achar péssimo não ter de ir trabalhar. Por isso, antes que tenha de perder meu tempo respondendo às asneiras que você escreveu, sugiro que comece uma campanha pelo fim imediato de todo e qualquer feriado religioso no Brasil. Ou, pelo menos, que insista em trabalhar em todos eles. Do contrário, é melhor ficar quieto no inferno do qual você veio. Abraços.
Pingback: A questão da laicidade do Estado | Dando a cara a tapa