Muita gente ainda me pergunta por que manter um blog. As razões são várias, mas, dentre outras coisas, o blog serve para registrar as análises dos acontecimentos no fragor da hora e, tempos depois, ver se o entendimento foi correto ou a avaliação foi demasiadamente superficial ou precipitada.
Desde que começaram as revoluções populares no Norte da África e no Oriente Médio, a imprensa começou a apelidar a sucessão de insurreições como “Primavera Árabe”. Tratava-se de uma clara alusão à Primavera dos Povos, um conjunto de revoluções que, em 1848, derrubou as monarquias restauradas pelo Congresso de Viena (1815). No post “A ‘primavera’ árabe”, procurei demonstrar o quão equivocada era a associação. Mais que ausência de elementos históricos e sociais a distanciarem os dois movimentos, a idéia de uma “primavera” árabe estava equivocada principalmente pela propaganda enganosa embutida no conceito. É dizer: propagava-se o conceito de primavera como se, daqui pra frente, tudo fosse ser diferente. Ignorava-se que, na Primavera dos Povos, um ano depois todos os governos revolucionários haviam sido derrubados e, no único país em que a revolução sobreviveu (a França), três anos depois o presidente eleito, Louis Bonaparte, daria um golpe de estado e se transformaria no futuro Napoleão III.
O que a imprensa apressada não conseguia enxergar é que, dentre as opções há mesa, só havia duas: ou um governo islâmico, de vocação fundamentalista, eleito democraticamente pelo povo para instalar uma ditadura teocrática; ou um golpe militar, com discreto apoio estrangeiro (principalmente americano), que mantivesse tudo como dantes. No post “Egito em convulsão – parte II“, procurei demonstrar que era justamente isso que justificava a hesitação dos militares em concordar com eleições democráticas no Egito.
Ontem, a Suprema Corte do Egito dissolveu o Parlamento. Com isso, a Assembléia Constituinte eleita pelo povo foi destronada, e o Poder Legislativo passou às mãos dos militares.
Pra quem acredita em mula-sem-cabeça e boi-tatá, trata-se de uma decisão soberana de uma corte de justiça. Para quem tem mais de seis anos, foi só um pretexto para dar um golpe e impedir que a Irmandade Muçulmana, maior partido do Parlamento, conseguisse eleger também o Presidente. Com Executivo e Legislativo nas mãos, seria necessário apenas vontade para transformar o país em um novo Irã.
Aconteceu, portanto, aquilo que todo mundo já sabia: democracia sim, desde que seja um governo com pendores pró-ocidentais. Do contrário, é golpe militar na cabeça.
Engana-se quem acredita que os americanos, ao pedirem “respeito” ao processo democrático, estejam descontentes com o golpe. Pelo contrário. O mais provável é que o tenham fomentado. No estado atual de coisas, tudo o que os americanos não precisam é da maior nação árabe transformada em um governo de clérigos hostis.
Pouco mais de um ano depois do início das revoluções no Norte da África e no Oriente Médio, a única conclusão a que se chega é de que, se algo mudou, foi pra pior. Khaddafi se foi, mas deixou atrás de si um governo islâmico e um país indo pelo ralo. Síria, Tunísia e Bharein já vão a meio caminho. No Egito, a esperança de democracia foi enterrada com o golpe branco de ontem.
Resultado de tudo isso? A conclusão de que o Autor estava errado quando disse que a Primavera Árabe não tinha nada a ver com a Primavera dos Povos. Na verdade, repetiu-a em todos os seus termos. Inclusive no fracasso.
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