A anarquia do humor

Bem que eu queria escrever sobre algo mais leve hoje, mas a morte de Chico Anysio deixou-me suficientemente atordoado para esquecer o que eu ia escrever.

Sem problema, porque, pauta por pauta, falar de Chico Anysio jamais será algo maçante.

Não quero aqui deitar palavras sobre a vida de Chico Anyisio. Aí estão os jornais, web, revistas, reportagens de TV que certamente se encarregarão de fazer uma retrospectiva digna do velho Chico. Quero apenas ressaltar uma faceta de sua personalidade que, a meu ver, marcou sua existência: a anarquia presente no seu humor.

Salvo engano, acho que foi Jô Soares que disse que todo humorista, para ser bom, deve ser anárquico. Jô falou nisso quando lhe perguntaram sobre opções políticas. Para Jô, o bom humorista não pode ter preferências políticas. Deve ser sempre um crítico. Do tipo: “Há governo, sou contra”.

Chico Anysio foi talvez o exemplo mais bem acabado disso. Seu emocionante depoimento ao Fantástico no ano passado é a prova mais cabal do que estou falando. Chico disse: “Eu não posso mudar nada. Mas é meu dever denunciar”.

E Chico passou a vida denunciando. Denunciando o preconceito sulista contra os nordestinos. Denunciando a corrupção desenfreada a detonar a população. Denunciando a hipocrisia social. Denunciando, enfim, tudo aquilo que, na sua opinião, deveria merecer a repulsa do povo.

Antes de ser profissão, o humor era sua arma. O escárnio escancarado, a língua afiada, o raciocínio rápido… Tudo isso fazia de Chico Anysio um personagem temido. Temido pelos escroques, a vestir a carapuça de Justo Veríssimo. Temido pelos boleiros de meia tigela, escrachados com o Coalhada. Temido até mesmo pelos intelectuais da tropicália, ironizados na sua imortal dupla com Arnaud Rodrigues – Baiano e os Novos Caetanos.

Com tudo isso, Chico consegui tornar cômicas mesmo as maiores tragédias do panorama nacional. Chico não fazia isso para amenizar o problema, mas para incomodar os atingidos pelas suas piadas e, mais do que isso, tentar com elas despertar algum tipo de indignação naqueles que o assistiam, sempre inertes e passivos diante daquela caixa mágica cheia de fios e luzes chamada televisão.

Curiosamente, Chico acabou casando-se com a Rede Globo, talvez a menos indicada das grandes redes abertas para exercer o seu anarquismo. Como Juca Kfouri – um ex-funcionário da emissora – disse certa vez, a estrutura da Globo oprimia seus empregados mais liberais, sempre obrigados a dar cotoveladas de vez em quando para buscar um pouco mais de liberdade e espaço.

Mas Chico não usava os cotovelos. Usava os punhos cerrados, mesmo. Não à toa, amargou uma geladeira cruel e injusta nestes últimos anos de vida, vinculado à Rede Globo mas praticamente impedido de ir ao ar (salvo algumas aparições menores no Zorra Total).

Tudo bem. A comoção gerada pela morte de um senhor de 80 anos, há alguns anos fora do circuito televisivo, prova que sua vida não foi em vão. As lições marcam; o exemplo fica. E, se isso não ameniza a dor da perda, conforta e consola quem hoje chora pela sua morte.

Vá em paz, grande nordestino.

Uma singela homenagem do Dando a cara a tapa

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