Hoje o Supremo Tribunal Federal julgará a manutenção ou a derrubada da liminar concedida pelo Ministro Marco Aurélio Mello na ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação dos Magistrados do Brasil contra o Conselho Nacional de Justiça. Desde o recebimento da denúncia do caso do mensalão não se via tamanha tentativa de emparedamento da Suprema Corte do país.
No caso do mensalão, como o Ministro Ricardo Lewandowski chegou a confessar em privado, o Supremo votou “com a faca no pescoço”. Guardadas as devidas proporções, o mesmo está se passando no caso do CNJ.
Quem acompanha o blog já sabe qual a minha opinião sobre o tema. Mas, até o momento, não desci aos detalhes técnicos da questão. Hoje, farei isso, tentando colocar de uma forma minimamente inteligível para quem não é da área.
Em resumo, o dilema é o seguinte: o CNJ pode abrir processos contra magistrados sem que antes tenha sido aberta investigação pelas corregedorias locais? Ou deve esperar a atuação prévia das corregedorias para só depois atuar? Em juridiquês claro: a competência do CNJ é “concorrente” ou “subsidiária”?
Uma leitura atenta do art. 103-B da Constituição Federal deixa, a meu ver, evidente que a competência do CNJ é subsidiária, não concorrente.
O inciso V do parágrafo 4o. do referido artigo estabelece que compete ao CNJ “rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano”. A literalidade do dispositivo não deixa margem a dúvidas. Se o CNJ só pode rever de ofício processos disciplinares “julgados há menos de um ano”, é evidente que só pode reanalisar processos que já foram julgados pelas corregedorias locais. Os vocábulos “rever” e “julgados” deixam claro que o CNJ atua para revisar processos já decididos pelos tribunais locais. Portanto, não poderia atuar antes dele.
Os que defendem a competência concorrente invocam de ordinário o inciso III do mesmo artigo e parágrafo. Nele, está disposto que compete ao CNJ “receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgõas prestadores de serviços notariais e de registro que atuem pode delegação do poder público ou oficializados”. O início do inciso indica, à primeira vista, a competência concorrente. Mas a redação continua: “sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa”.
A expressão “sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais” pode conduzir apressadamente o intérprete a concluir pela competência concorrente. Mas a locução “podendo avocar processos disciplinares em curso” ressaltava novamente a prévia atuação da corregedoria local. Se o processo disciplinar está “em curso” é porque foi aberto pela corregedoria. Por isso mesmo a utilização do vocábulo “avocar”, porque só se avoca um procedimento já existente.
A partir do texto constitucional, no meu modesto entendimento, não há qualquer fundamento a embasar a competência concorrente do CNJ.
Isso do ponto de vista do que é. Do ponto de vista do que deveria ser, a coisa muda de figura.
Acho que uma pequena alteração de competência viria a calhar para o CNJ. No meu entendimento, acho que CNJ deveria ter competência concorrente para julgar desembargadores. De fato, o compadrio é algo difícil de controlar em tribunais. Como o universo de desembargadores é bastante restrito, é até natural pensar que os pares ficarão contrangidos em julgar os seus semelhantes. Para isso, o CNJ poderia atuar de forma equidistante, julgando os casos que trouxessem embaraço aos membros dos tribunais.
Mas, para juízes de 1o. grau, não vejo como admitir tal competência. É papel do tribunal controlar e, se for o caso, condenar os juízes a ele vinculados. Se se admitir a prevalência do CNJ, é de se perguntar: o que fazer com as 90 corregedorias espalhadas pelo país? Acabar simplesmente com elas? Transformar o CNJ num super-tribunal?
Além disso, essa posição suscita alguns problemas. Primeiramente, suprime-se do juiz o direito ao duplo grau de jurisdição. Se ele for julgado pelo tribunal, pode recorrer ao CNJ. Mas se for julgado diretamente no CNJ, vai recorrer a quem? Em segundo lugar, todo juiz representado teria de se deslocar de sua comarca – algumas bem longíquas – para ir a Brasília defender-se de toda representação proposta contra si. Quem vai pagar a conta do deslocamento do juiz e dos dias em que se ausentará da comarca para defender-se?
Fora isso, as partes inconformadas com alguma decisão podem simplesmente inundar o juiz com representações no CNJ, algo que já vem de forma inquietante acontecendo. Nesse caso, a depender da capacidade econômica da parte, um juiz pode começar a pensar duas vezes antes de tomar uma decisão: será que vale a pena comprar uma briga dessa e ver sua vida transformada num inferno?
Esses, portanto, são os principais argumentos a favor da Adin ajuizada pela AMB.
Há, no entanto, argumentos contrários a ela e a favor do CNJ. Como não tenho qualquer pretensão de dar a última palavra sobre o assunto, convidei um amigo meu a escrever um post defendendo o exato oposto do que defendi aqui. Ele topou o desafio. À noite, quando estiver de posse do seu artigo, postarei aqui no blog.
Aos visitantes, portanto, serão oferecidas duas visões sobre um mesmo tema. Assim, ficará mais fácil formar opinião sobre o assunto.
Sobre o julgamento de hoje? 6×5 em favor do emparedamento. Marco Aurélio Mello, ladeado por Celso de Mello, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e César Peluso ficarão vencidos contra Gilmar Mendes, Ayres Britto, Dias Toffoli, Carmen Lúcia, Joaquim Barbosa e Rosa Maria Weber.
A conferir.
O Duplo Grau de Jurisdição é um princípio absoluto?
Tema para tese, Rodrigo. Em princípio, creio que não. Admito exceções à regra. Como disse no post, no caso de desembargadores, o duplo grau iria para o espaço. Mas o fundo da questão dos poderes do CNJ não gira em torno da garantia do duplo grau de jurisdição aos magistrados. Esse seria, na minha opinião, apenas mais um inconveniente a depor contra a possibilidade de se conferir ao CNJ a competência para, de forma originária, julgar juízes de 1o. grau. Abraços.