A marcha da insensatez

Dando sequência à retomada de algumas das seções mais queridas (e esquecidas) aqui do Blog, vamos tratar de um tema que sempre foi caro a este que vos escreve: a tão maltratada História. E, para retomar essa seção em grande estilo, vamos falar sobre uma das obras mais relevantes da historiografia do século XX: A marcha da insensatez.

Antes da obra propriamente dita, falemos da autora.

Barbara Tuchman não foi uma historiadora comum. Bicampeã do Pulitzer (por Os Canhões de Agosto e Stillwell and the American Experience in China), ela elevou a narrativa histórica a uma forma de arte, combinando um rigor metodológico com uma prosa vibrante e acessível. Ela tinha um talento especial para destrinchar os mecanismos do poder e as idiossincrasias da natureza humana que moldam os eventos globais. E em nenhum outro livro essa habilidade é mais evidente do que em A Marcha da Insensatez.

Publicado originalmente em 1984, o livro não é uma crônica linear de eventos. Ele está mais para estudo anatômico, uma espécie de autópsia de padrões peculiares que quase sempre redundam em catástrofe: a insistência terrivelmente teimosa de governantes em adotar políticas contrárias aos seus próprios interesses.

“Insensatez”, para Barbara Tuchman, não é aquela que o vulgo popular costuma emprestar ao termo, de sinônimo de loucura ou temeridade. Não se trata, tampouco, de um mero erro de cálculo ou de uma tragédia inevitável. De acordo com a autora, para um caso histórico se qualificar como insensatez, ele deve preencher necessariamente três requisitos: 1) a política deve ter sido percebida como contraproducente na sua época; 2) deve ter havido alternativas viáveis e identificáveis; e 3) a política deve ter sido perseguida por um grupo, e não por um único governante, ao longo de um período de tempo significativo.

A obra é estruturada em torno de quatro grandes estudos de casos. O primeiro caso remonta às origens da literatura ocidental: a famosa Guerra de Tróia, imortalizada na Ilíada, de Homero. Tuchman recorre a Tróia para mostrar que os troianos, conscientes de que Páris estava errado ao raptar Helena, optaram pela guerra em vez da solução óbvia: expulsar simplesmente o casal. Apesar de avisos proféticos, como a de Cassandra (a profetisa a quem ninguém ouve), o rei Príamo e a elite troiana escolheram o caminho da honra e do orgulho, o que os levou à sua aniquilação total. Trata-se do exemplo. mais bem acabado da insensatez: preferir a destruição a admitir um erro.

Dos tempos homéricos a obra salta direto para o Renascimento. Barbara Tuchman brilha ao demonstrar que, no curto espaço de apenas seis papas – Sisto IV, Inocêncio III, Alexandre VI (o famigerado Roderigo Borja), Pio III e Leão X – a estrutura corrupta e depravada da Igreja Católica de então conduziu ao único resultado possível em tais circunstâncias: a Reforma Protestante. Homens mais interessados no poder temporal, no nepotismo e na devassidão, esses pontífices ignoraram o apelo por reformas e tornaram lugar-comum a corrupção e a venda de indulgências. A ironia aqui é trágica: os líderes designados para salvar as almas foram os mesmos que, por pura indolência e ambição, perderam metade delas.

O livro ainda traz os casos da perda das colônias norte-americanas pela Inglaterra, assim como o trágico caso da Guerra do Vietnã. No final das contas, Barbara Tuchman conclui o que parece óbvio a qualquer um que observe uma situação tal “do lado de fora”: os atos de insensatez raramente são fruto apenas de maldade pura. Antes disso, são um produto direto da rigidez mental, da embriaguez pelo poder e, sobretudo, da recusa em aceitar evidências que contrariem as crenças já estabelecidas. Ou, na síntese magistral da própria autora, é a “supressão da informação por não se conformar aos desejos pré-concebidos”.

Mais do que uma aula de História, A marcha da insensatez é um manual de sobrevivência política. Ele não nos deixa esperançosos sobre a natureza dos governantes. Pelo contrário. Sua idéia é estimular a desconfiança e o ceticismo quanto ao uso dos mecanismos de poder. Quando este vem desacompanhado do mínimo de sabedoria e humildade, é como se todo um povo marchasse alegremente em direção ao abismo.

Embora volumoso, o livro se desenvolve numa prosa clara e bastante agradável. Com alguma sorte, o leitor poderá aprender a utilizar algumas ferramentas visando a identificar os mesmos padrões de insensatez no mundo contemporâneo. Se isso pode parecer chato e desimportante para alguns, será de grande serventia para os mais antenados. Afinal, sempre é bom reconhecer a insensatez quando ela começa a bater à sua porta.

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