Aproveitando a relativa calmaria no cenário nacional e internacional, vamos sair da mesmice analítica do dia a dia e resgatar uma das seções mais queridas (e esquecidas) deste espaço: as sempre maltratadas Artes. E, nesse caso, vamos retomar a seção em grande estilo, pois – que me perdoem os “camonistas” (que gostam de Camões) – não haverá poeta maior na Língua Portuguesa do que Fernando Pessoa.
A começar pelo fato de que Fernando Pessoa não era um, mas impressionantes quarenta e sete (isso mesmo, 47) poetas ao mesmo tempo. Aparentemente, seu gênio não cabia numa só personalidade, razão pela qual ele recorria à estratégia de criar heterônimos. Verdadeiras personagens, os alter egos de Pessoa tinham identidade, RG, endereço, profissão e até mapa astral. Muitos deles inclusive brigavam entre si por meio de cartas. Das mais conhecidas, sobressaem-se três: Alberto Caiero, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Foi este último que, ainda no começo do século passado, escreveu um poema que bem se aplica aos tempos boçais de hoje.
Quem tem ou já verificou como funcionam os perfis em redes sociais, já pôde perceber que a maioria das pessoas ostentam não só um patrimônio que muitas vezes não têm, mas – o que é pior – exibem uma personalidade que nem sequer são. Nelas, ninguém erra. Todo mundo é perfeito e a vida é um doce passeio ao sabor da manhã.
Embora a ostentação em redes sociais seja algo historicamente novo, já no tempo de Pessoa o fenômeno se manifestava. Por isso mesmo, seu heterônimo mais exuberante e assertivo escreveu o Poema em linha reta. Livre na forma, o poema é verdadeiramente ácido no conteúdo. Numa Europa que marchava para a I Guerra Mundial, a sociedade portuguesa de 1914 – ano em que o Poema foi escrito – retratava com irritante perfeição o falso moralismo católico. Em um mundo baseado nas aparências, o maior dos crimes sociais parecia ser a honestidade de admitir todas as suas falhas.
O texto desenvolve-se no formato de um monólogo, como se o sujeito a declamá-lo estivesse no terceiro ou quarto copo de um bar pulguento e, do nada, resolve confrontar o mundo hipócrita à sua volta. O Poema não é senão um monumento à ironia. Os versos são longos e livres e precipitam-se sobre o leitor como um dilúvio de autocríticas.
O Poema já começa com uma voadora no peito do leitor: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada“. Se o termo “porrada” já parece algo no limite do obsceno hoje, imagine há mais de cem anos. Ironicamente, o poeta relata que “todos os meus conhecidos têm sido campeões tudo“. Ele mesmo, porém, é o contrário: “tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil“. Um sujeito que não tem “tido paciência para tomar banho” e que tantas vezes foi “grotesco, mesquinho, submisso, arrogante“. Pior. Além de ter sofrido calado “enxovalhos”, mesmo “quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda“.
Ao contrário dos influencers de hoje em dia, o poeta rejeita qualquer veleidade. É como se ele estivesse a desfiar um rosário, um catálogo de misérias que apenas se acumula, sem nada que pudesse salvar aquela pobre alma torniturada. A repetição incessante da fórmula “Eu, que tantas vezes…” cria um ritmo obsessivo, como se estivéssemos a ouvir o seu tribunal interior a ler a sua sentença condenatória.
É justamente nesse ponto que Poema atinge o seu ápice, em formato de denúncia. O poeta que revela que “toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho“. Mais. “Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes! – na vida“. É por isso mesmo que ele se lamenta: “Estou farto de semideuses“. Ele pergunta em vão: “Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?” E encerra em um grito desesperado: “Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?”
Poema em linha reta é um tapa na cara de uma sociedade que se desacostumou a mostrar-se cara numa em mar de selfies com filtro. “Quem há neste largo mundo que me confesso que uma vez foi vil?” Nas redes, ninguém ousaria semelhante confissão. Até os pecados são “goumertizados”, como se comer uma pizza no final de semana ou um cachorro quente no almoço fosse o supremo desplante para quem vive de dieta. Você não encontrará nesse ambiente uma infâmia verdadeira, uma vilania verdadeira, como se todos ali fossem apenas seres cumprindo uma passagem obrigatória neste plano a caminho do Paraíso.
Toda vez que você se sentir mal ao visitar páginas alheias, lembre-se de Fernando Pessoa. Você não é pior do que ninguém. Talvez, você seja apenas alguém que tem o defeito de não saber fingir e, por isso, admite as próprias falhas. Quando você se der conta disso, descobrirá que a única poesia verdadeiramente reta é aquela que reconhece as próprias curvas, os próprios desvios, e até mesmo os tropeços que a tornam ridícula. Enquanto isso, os “príncipes” – todos eles príncipes! – seguem reinando nos feeds e nos stories das vidas de fantasia.
De qual lado você prefere estar?
Abaixo, a íntegra do Poema em linha reta:
Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita
Indesculpavelmente sujo
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, absurdo
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante
Que tenho sofrido enxovalhos e calado
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Pra fora da possibilidade do soco
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil
Ó príncipes, meus irmãos
Argh! Estou farto de semideuses
Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado
Poderão ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.