Os franceses dispõem, na sua língua materna, de uma expressão magnífica: l’instant décisif. Embora a tradução literal seja razoavelmente simples mesmo para quem não é versado na língua de Voltaire, a mera transposição do termo gálico para o vernáculo não reflete de forma precisa o significado completo que a locução encerra. Cunhada pelo lendário fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, o instante decisivo representa o ápice momentâneo e efêmero em que todos os elementos se alinham, como numa conjunção astral mágica, formando uma composição perfeita do quadro fotográfico.
Tendo chegado ao fim o longo processo relativo ao golpe de Estado planejado por Jair Bolsonaro, qual teria sido o instante decisivo de sua nêmesis, o sujeito sem o qual provavelmente jamais teríamos chegado até aqui, com um ex-presidente e generais de todas as estrelas condenados, Alexandre “Xandão” de Moraes?
Os mais afoitos tenderão a responder na lata: “Ora, o julgamento da cúpula golpista!” Essa, contudo, seria uma conclusão apressada e simplória. É certo que a condenação final, colocando uma lápide de 27 anos sobre os planos golpistas de Bolsonaro, não deixa de representar um fim glorioso para uma batalha que, desde o seu começo, pareceu agoniante. Todavia, ela está longe de ser o vértice dessa jornada toda. A meu ver, l’instant décisif foi por volta das 15h do dia 30 de outubro de 2022.
Que dia e hora foram esses?
Como todo mundo sabe, Jair Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva disputavam palmo a palmo a presidência da República naquele ano. Não satisfeito em ter se valido inconstitucionalmente do Congresso para explodir qualquer resquício de paridade de armas com a chamada “PEC Kamikaze”, Bolsonaro quis garantir que os eleitores que não tivessem sido comprados com sua derrama de dinheiro eleitoral não pudessem votar.
Visando a esse objetivo, seu ministro da Justiça, Anderson Torres, e o então Diretor da Polícia Rodoviária Federal, Silvinei Vasques, organizaram um crime sem precedentes em quase 150 anos de República. Tendo mapeado as localidades do Nordeste em que a maioria dos eleitores pendera para Lula no 1º Turno, Torres e Vasques dispuseram equipes da PRF em estradas de toda a região. Seu objetivo era claro: bloquear o deslocamento de eleitores até as urnas. Ou, em português mais claro, impedir que os eleitores votassem.
Obviamente, um escândalo dessa magnitude não surge do acaso e, por isso mesmo, é difícil de esconder quando colocado em marcha. Já no meio da manhã daquele dia começaram os murmúrios de que algo de estranho estava acontecendo no Nordeste. Antes do meio dia, as redes sociais cuidaram de tirar o véu do escândalo: todo mundo viu o que Bolsonaro estava tentando fazer.
Respondendo pela Presidência do Tribunal Superior Eleitoral, Xandão recebeu em sua mesa uma representação do PT e de outros partidos da coligação de Lula. Dois eram os pedidos: 1) que as estradas fossem desbloqueadas pela PRF, para que os eleitores pudessem votar; e 2) tendo em vista a criminosa operação de retardo, que o horário de votação fosse estendido.
Sem se descabelar – até por impossibilidade material (a careca de Xandão não guarda qualquer resquício de cabelo) -, Alexandre de Moraes convocou Silvinei Vasques à sede do TSE. O diretor da PRF chegou mais ou menos na hora do almoço dos ministros. Veio fardado e armado, e estava acompanhando de outros dois brutamontes, igualmente armados e fardados.
Xandão deixou a quentinha de lado e foi à sala da Presidência do TSE ter com as figuras. Sozinho e desarmado, Alexandre de Moraes usou apenas a língua e a força da palavra como armas: se a PRF não encerrasse com as blitz naquele exato momento, Silvinei Vasques seria preso ali mesmo. Branco e lívido, Vasques deixou a sede do TSE e cumpriu a determinação do ministro. Esse, entretanto, não era o fim da novela. Restava saber o que fazer com o pedido de prorrogação do prazo para votação.
É impossível reconstituir que tipo de pensamento passou pela cabeça de Xandão naquele momento, mas certamente esse foi seu instante decisivo. Do ponto de vista puramente lógico, todo mundo entenderia se ele deferisse o pedido de prorrogação formulado pelo PT. Afinal, já naquela altura todo mundo tinha entendido que tipo de jogada criminosa estava em jogo. Logo, se eleitores perderam tempo para votar por conta de blitz ilegais promovidas por um governo bandido, nada mais razoável do que autorizar que esses mesmos eleitores tivessem mais tempo para exercer seu direito de sufrágio. Se isso tivesse acontecido, talvez nenhum de nós estivesse aqui hoje para contar a história.
Quando Xandão veio a público às 15h do dia 30 de outubro de 2022 para dizer que não haveria prorrogação de prazo, ele provavelmente sabia que estava desviando de uma casca de banana, mas talvez não imaginasse o tamanho da bomba que estava desarmando. Caso ele tivesse autorizado, por decisão monocrática, a prorrogação do período de votação, os bolsonaristas golpistas teriam o argumento perfeito para alegar a “interferência do TSE nas eleições”.
Se a decisão fosse derrubada depois pelos outros ministros, eles iriam alegar que não seria possível saber quantos eleitores teriam votado depois de findo o prazo regular da votação. E, ainda que os colegas de Alexandre de Moraes mantivessem a sua decisão, eles iriam alegar que todo o TSE esteve envolvido numa conspirata para desequilibrar a balança da corrida eleitoral a favor de Lula. Em qualquer cenário, estaria construído o mote perfeito para a “intervenção militar constitucional” visando a manter Bolsonaro no poder.
Naquelas poucas horas entre a notícia das blitz da PRF, a representação do PT e a coletiva de Xandão, esteve em causa não somente o resultado da eleição de 2022, mas o próprio futuro da democracia no país. Naquele instante decisivo, todos os conhecimentos jurídico, político, sociológico e até psicológico que Xandão adquiriu em vida se reuniram para formar um momento iluminado. Olhando-se em retrospecto, chega a ser impressionante o quanto essa façanha se deveu a um só homem e à habilidade com que administrou a própria obstinação.
Um dia, quem sabe, algum cineasta brasileiro talentoso fará uma obra-prima do cinema sobre a saga da salvação da democracia brasileira. Quando isso acontecer, espera-se que ele renda o devido tributo a l’instant décisif de Xandão. É graças a ele que não nos precipitamos novamente numa ditadura.