A crise do metanol, ou A ciência por trás dos destilados

Quem está acompanhando o noticiário deve ter visto.

Em São Paulo, pelo menos onze pessoas foram contaminadas após ingerirem metanol. Ninguém sabe ao certo como tudo começou. Sabe-se, apenas, que várias pessoas relataram sintomas de intoxicação profunda após consumirem bebidas destiladas em um bar da capital paulista. Cinco pessoas já morreram, uma ficou cega e mais de quarenta casos ainda estão sendo investigados como possível resultado da contaminação coletiva.

Apelido mais usado do álcool metílico, o metanol é usado principalmente como combustível. É ele, por exemplo, que abastece os tanques dos bólidos de Fórmula Indy. Com a curiosa característica de ser um líquido altamente inflamável mas que possui chama invisível, o composto é altamente tóxico para o nosso organismo.

Descartando-se, por improvável, a hipótese de contaminação proposital das bebidas, a maior probabilidade é de que estejamos diante de mais um caso de falsificação e venda ilegal de bebidas alcoólicas. Para compreender como isso pode acontecer, é necessário, antes, explicar como se produzem de fato os etílicos que boa parte da população costuma sorver para se alegrar ou simplesmente esquecer os males da vida.

Tudo começa com um processo bioquímico milenar chamado de fermentação alcoólica. Microorganismos celulares, a que chamamos de leveduras, são os principais responsáveis por esse processo. Elas consomem os açúcares simples presentes no sumo extraído de frutas, grãos ou cana-de-açúcar e, na ausência de oxigênio, convertem-nos em etanol e dióxido de carbono. A reação química é expressa na seguinte fórmula: Glicose (C₆H₁₂O₆) → 2 Etanol (C₂H₅OH) + 2 Dióxido de Carbono (CO₂).

As bebidas resultantes da fermentação têm, em regra, baixo teor alcoólico (entre 4% e 14%). É o caso, por exemplo, da cerveja nossa de cada dia e do vinho. Para obter bebidas com teor alcoólico mais elevado – como vodca, uísque e cachaça -, é necessário todavia dar um passo adicional: a destilação.

A destilação é um processo físico de separação que explora a diferença nos pontos de ebulição entre o etanol (78,3°C) e a água (100°C). A mistura fermentada (o “mosto”) é aquecida. Como o etanol ferve a uma temperatura mais baixa, ele evapora primeiro. Esse vapor é então resfriado e condensado em um recipiente separado, resultando em um líquido com uma concentração muito maior de etanol – a bebida destilada.

Qual o problema?

Durante a fermentação, as leveduras não produzem apenas etanol. Pequenas quantidades de outros álcoois, conhecidos como “álcoois de fusel” ou “congêneres”, também são gerados. É aqui que surge o agora famoso metanol (CH₃OH).

A formação do metanol está intimamente ligada à matéria-prima utilizada. Enquanto o etanol é produzido principalmente a partir do açúcar dentro das células das leveduras, o metanol é formado pela quebra enzimática da pectina, um polissacarídeo que atua como “cimento” estrutural nas paredes celulares de frutas e vegetais. Bebidas destiladas de frutas com alto teor de pectina, como maçãs, laranjas, ameixas e, especialmente, cidra de maçã e aguardentes de frutas em geral, naturalmente contêm níveis ligeiramente mais altos de metanol.

Em uma destilaria industrial e regulamentada, o processo é rigidamente controlado. Os produtores utilizam a “cabeça” ou “coração” da destilação – a fração do destilado que contém a concentração mais pura de etanol – e descartam as “pontas” (a primeira fração a sair do alambique) e a “cauda” (a última fração). Isso é crucial porque o metanol, por ter um ponto de ebulição mais baixo (64,7°C) que o etanol, tende a se concentrar justamente nas “pontas”. Ao descartar essas frações iniciais, a maior parte do metanol é removida.

No caso agora da contaminação em larga escala observada em São Paulo, o surgimento de tantos casos simultâneos de intoxicação por metanol é indicativo direto de produção ilegal de bebidas, por “fabricantes” não autorizados. Em outras palavras, destilarias de fundo de quintal estão produzindo ilegalmente bebidas e espalhando-as pelo mercado através de rótulos falsificados.

Isso acontece porque, ao tentar maximizar o lucro da operação, os bandidos não costumam fazer o “corte” correto do destilado. Ao invés de selecionar o “coração” da destilação, eles utilizam a mistura inteira, de modo a encher mais rápido as garrafas falsificadas. Assim, aquilo que deveria ser descartado acaba sendo envasilhado de roldão.

Embora qualquer um possa intuir que beber um combustível não pode fazer bem à saúde, o mal que o metanol causa é muito maior do que se pode imaginar. A tragédia começa no fígado, que transforma o metanol em substâncias letais. Primeiro, ele forma o formaldeído (uma substância cancerígena e altamente reativa). Depois, o ácido fórmico. O ácido fórmico é o principal responsável pela intoxicação do pobre coitado. Ele interfere na mitocôndria, a “usina de energia” das células. Isso paralisa a produção de energia e causa uma condição grave chamada acidose metabólica, fazendo com que o PH do sangue caia para níveis perigosamente ácidos.

O formaldeído, por sua vez, é um agente altamente reativo e danifica proteínas e o próprio DNA. No nervo óptico, ele causa degeneração das células ganglionares da retina, levando a danos irreversíveis e, frequentemente, à cegueira – um sintoma clássico da intoxicação por metanol. Aquilo que inicialmente pode ser confundido com a velha e boa ressaca (tontura, dor de cabeça, náusea e vômito), evolui rapidamente de maneira fulminante. Em menos de 24h, ocorre visão turva ou perda total da visão, dor abdominal intensa, dificuldade respiratória, convulsões, coma e, em muitos casos, a morte por parada cardiorrespiratória.

    O tratamento, por óbvio, é uma corrida contra o tempo. Supondo que exista um diagnóstico correto em prazo tão curto, deve-se administrar etanol (ou um medicamento específico, o fomepizol) para bloquear a enzima que metaboliza o metanol. Além disso, deve-se fazer diálise no paciente para remover a toxina do sangue e fazê-lo ingerir bicarbonato de sódio para corrigir a acidose.

    No meio dessa confusão toda, seria cômico – se não fosse trágico – verificar que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, encontra-se por ora mais empenhado em tentar salvar da cadeia seu padrinho político, Jair Bolsonaro. Enquanto pessoas morrem e ninguém sabe ao certo o que causou esse surto de intoxicação por metanol, Tarcísio estava em Brasília tentando cavar anistia ao ex-patrão.

    Como não dá pra contar com a eficiência do governador, resta aos paulistas deixar os destilados de lado por um tempo e ficar na cervejinha por enquanto. Afinal, seguro morreu de velho…

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