A rejeição da PEC da bandidagem, ou Da verdadeira natureza do sistema democrático

Muita gente boa costuma dizer que “sair à rua” não resolve nada. Bem, estes últimos dias ofereceram um exemplo cabal do contrário.

Depois de uma jornada de horror na semana passada, quando a Câmara dos Deputados – numa conjunção carnal pornográfica entre o Centrão dinheirista e a extrema-direita bolsonarista – resolveu tentar empurrar goela abaixo da população a PEC da bandidagem (para saber mais, clique aqui). A reação do povo foi tão rápida e o volume de gente foi tão expressivo que, com a velocidade de um raio na tempestade, fulminou-se a pretensão da ala bandida do Congresso ontem mesmo. “Morte matada”, respondeu um acabrunhado deputado Cláudio Cajado, relator do troço, quando indagado a respeito do destino da proposta.

Para além de provar que povo na rua muda sim os humores dos parlamentares, os episódios desta última semana também oferecem um exemplo bem didático de como realmente funciona uma democracia. Para boa parte da população, a democracia representa um sistema quase idílico, no qual as pessoas votam de acordo com suas convicções pessoais. Eleitos, os representantes do povo discutem numa atmosfera sadia e respeitosa o que podem fazer para melhorar a vida do povo e fazer com que o país avance. Lamento informar, contudo, que, na prática, a teoria é outra.

Ao invés de estarmos – representantes eleitos e população – engajados na maior parte do tempo em produzir coisas boas, que tragam coisas melhores, no final das contas um sistema democrático funciona como um grande sistema de contenção de danos. Em 90% ou mais do tempo, o que estamos tentando fazer é impedir que as coisas piorem. No caso da PEC da bandidagem, por exemplo, queria-se construir uma blindagem que tornasse os parlamentares virtualmente imunes à Justiça.

O descaramento foi tão grande que, despertada a pressão popular, os nobres congressistas foram obrigados a puxar o freio de mão. Pressionado, o sistema funcionou. Mas isso só aconteceu porque se formou uma força muito tangível, concreta e ameaçadora: a indignação popular. Não se subestime, a esse respeito, os “cartazes” que começaram a rolar nas redes sociais com os nomes dos “responsáveis” que votaram a favor da PEC. Se tem algo que qualquer político – todo político – tem de sobra é instinto de sobrevivência. O sujeito pode não ser muito esperto, mas consegue sentir de longe o cheiro de queimado. Foi por isso – e só por isso – que a PEC foi fulminada de maneira tão rápida e inapelável pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Pode parecer triste, mas a democracia, em sua essência, não passa de um mecanismo fundamentalmente complexo destinado a evitar desastres. Os famosos “freios e contrapesos” do sistema de tripartição de poderes servem não para construir um Éden, mas para evitar que maiorias ocasionais ou acordos espúrios de bastidores transformem isto aqui em um inferno. Sob esse prisma, a verdadeira vitória da democracia, na maior parte dos casos, é expressa no tédio na normalidade. Por concepção, o sistema é desenhado para ser lento, burocrático e reativo. Ou, mais sinteticamente, passamos a imensa maioria do tempo comemorando na base do no news is good news.

Claro, em determinadas circunstâncias históricas, quando os astros se alinham, a conjunção e favorável e Urano não está retrógrado, a gente consegue deixar de lado a agenda de contenção de danos e fazer com que avanços de verdade aconteçam. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a aprovação da Constituição de 1988. Foi o que aconteceu, também, com a aprovação do Plano Real, em 1994. Essas, porém, são exceções que confirmam a regra. Na maior parte do tempo, estamos como estivemos agora nesta semana, tentando impedir a mutilação da República pelos próprios agentes do Estado.

Para os mais pessimistas e apressados, esse sistema não funciona. Por isso mesmo, sempre haverá autoritários de plantão vendendo a ilusão sedutora de que, se acabarmos com todos os mecanismos de contenção, eles nos levarão ao paraíso rapidamente. Essa, contudo, é uma ilusão perigosa. Como já se disse certa vez, temos eleições periódicas não porque escolhemos os melhores, mas simplesmente para impedir que os piores se perpetuem no poder. Não por acaso, quando se retiram os freios do sistema, o que geralmente acontece não é uma corrida em direção ao Éden, mas se acelerar o passo em direção ao abismo.

No final das contas, a pergunta fundamental que devemos fazer todos os dias numa democracia não é “que maravilhas vamos criar hoje?”, mas, sim, “qual desgraça vamos impedir agora?”. Por menos glamourosa que seja, essa é a única forma de se construir um futuro que preste. É o que se espera que o episódio da PEC da bandidagem tenha ensinado.

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