Da onde menos se espera, daí é que não vem mesmo.
Depois de uma semana histórica, em que enfim criminosos foram processados e condenados por tentar dar um golpe de Estado no Brasil, eis que o Congresso Nacional nos brinda com uma semana de horrores. Para além da urgência aprovada para o processo de anistia aos golpistas, o desastre maior aconteceu anteontem, com a aprovação da agora famosa “PEC da blindagem”.
Pelo texto da PEC aprovada na Câmara dos Deputados, nenhum congressista poderá sequer ser investigado senão com a autorização prévia da casa respectiva à que esteja vinculado. Fora isso, parlamentares só poderão ser condenados pelo Supremo Tribunal Federal caso haja 2/3 dos votos pela condenação. Como se isso não bastasse, os mimos não ficariam restritos aos detentores de mandato popular. Também os presidentes de partidos – ainda que não ocupantes de cargos eletivos – seriam igualmente beneficiados pela blindagem. Não por acaso, as redes sociais deram um nome mais apropriado ao bicho: “PEC da bandidagem”.
Exagero? Nem tanto.
De acordo com a proposta aprovada pela Câmara, não houve sequer restrição ao tipo de crime cometido pelo parlamentar. É dizer: não se trata de proteger o eleito para bem desempenhar o seu mandato, como é o caso, por exemplo, da imunidade por votos, palavras e opiniões. Não, não, absolutamente. Trata-se, literalmente, de um salvo conduto que impede a investigação por QUALQUER crime. Se o sujeito for um traficante, um homicida ou um pedófilo, somente poderá ser processado se os seus pares, benevolamente, assim autorizarem.
Do ponto de vista prático, ela torna um parlamentar praticamente imune a qualquer tipo de responsabilização penal. A menos que alguém acredite em Boitatá ou mula sem cabeça, é difícil imaginar o corporativismo parlamentar sendo quebrado para autorizar a investigação de um dos seus. Antes da mudança no ano 2000, houve 250 pedidos de abertura de inquérito contra parlamentares. Um – isso mesmo: UM – foi aprovado. Todos os outros ganharam o caminho do arquivo.
Não é preciso ser nenhum gênio da Ciência Política para imaginar os efeitos nefastos que essa proposta pode causar. Com esse tipo de virtual imunidade absoluta, facções do tipo CV e PCC – que já se infiltraram sorrateiramente em alguns nichos políticos do Brasil – farão de tudo para montar uma espécie de bancada própria. Além de literalmente dominarem a produção legislativa do país, seus líderes usariam o escudo da PEC da bandidagem para escapar de qualquer tipo de investigação criminal. O Brasil, portanto, caminharia a passos largos para se tornar um narcoestado.
Não custa lembrar que a aprovação da PEC é resultado direto da união entre o Centrão dinheirista e a direita golpista. Com receio das investigações sobre seis anos de roubalheira correndo solta no orçamento secreto, não passa pela cabeça de ninguém do Centrão responder pelas roubanças praticadas. Por isso a anistia pedida pelos bolsonaristas aos golpistas veio tão a calhar para essa gente. Em um acordo através do qual uma mão suja a outra, a direita bolsonarista ajudou o Centrão a aprovar a PEC da bandidagem e o Centrão, em retribuição, ajudou a aprovar ontem a urgência constitucional para a anistia aos golpistas.
Da boca pra fora, parlamentares dizem que a PEC se destina a impedir “chantagens” do Supremo contra parlamentares. Curioso, porque só pode ser chantageado quem fez alguma coisa de errado para ser cobrado depois. Fora isso, não é de Alexandre de Moraes que os deputados têm medo. É de Flávio Dino, relator dos processos de desvios das emendas parlamentares.
Do ponto de vista jurídico, a proposta é manifestamente inconstitucional. De cara, podem-se levar três violações diferentes à Constituição de 1988, a saber: 1 – Violação ao princípio da isonomia (não há razão que justifique tratar, do ponto de vista processual penal, de maneira diferente um parlamentar de um cidadão comum); 2 – Violação à separação de poderes (não pode o Legislativo impedir, na prática, o funcionamento regular de outro poder, o Judiciário); e 3 – Violação ao princípio da moralidade (não que a moralidade tenha sido algum dia uma grande baliza na política brasileira, mas esse nível de descaramento é obsceno até para os padrões pornográficos de Brasília).
Ainda é tempo de impedir esse descalabro. Embora aprovada na Câmara, a medida ainda tem de passar pelo Senado. Lá, onde existem apenas 81 senadores, a pressão da opinião pública é sentida de maneira mais presente. É preciso, porém, que a população desperte desse estado de torpor generalizado e comece a vociferar contra esse escárnio. Não dá pra ficar calado. É preciso lugar agora. Depois, quando o Brasil estiver dividido territorialmente entre facções criminosas, não vai adiantar reclamar…